João Botelho: ‘Não tenho certezas, só dúvidas’

Assinou alguns dos mais importantes filmes do cinema português e agora leva às salas Os Maias, adaptado da obra de Eça de Queirós. João Botelho estudou Engenharia Mecânica, mas apaixonou-se pelo cinema enquanto fugia das praxes em Coimbra. Eterno contestatário, diz que o 25 de Abril foi o dia mais feliz da sua vida, ainda mais…

No dia 11 estreia a adaptação de Os Maias, uma obra fundamental da literatura portuguesa. Porquê este livro?

O cinema é uma coisa tão precária que não podemos brincar. O cinema não pode ser consumido em menos tempo do que demorou a filmar. É preciso escolher obras importantes. Interessam-me obras sobre Portugal e Os Maias são, sobretudo, um romance sobre Portugal e uma obra actual. Está ali a ideia da elite portuguesa toda. Os banqueiros e os ministros continuam hoje a ser iguais ao que eram: incultos e ignorantes. Os Maias são um manancial dos comportamentos portugueses. O Eça [de Queirós] fez uma coisa que resistiu ao tempo e eu gostava que este filme resistisse, pelo menos, 30 anos.

Optou por não escrever um argumento, mas antes usar o texto do próprio Eça de Queirós. Foi um processo difícil?

Sim, porque aquilo é tudo bom. Dava para fazer um filme com 20 horas. São muitos filmes que estão ali dentro. Pensei na ópera para adaptar esta obra, porque na ópera há um artifício instalado para que depois o texto seja verdadeiro… No cinema é tudo falso, é tudo a fingir. O que é verdade é o que as pessoas sentem quando estão a ver. Mas não podemos condicionar e dar uma direcção única, temos de deixar as pessoas escolherem.

Não há mensagem no cinema?

Não pode haver. O cinema deve inquietar, dividir… O problema é que o cinema hoje é visto a comer pipocas e a mandar SMS e ninguém se concentra em nada.

O que está a dizer é que o cinema de hoje promove pouco o pensamento?

A concentração. Os miúdos de hoje têm grande dificuldade em estar dez minutos a olhar para uma pintura. Vêem tudo a correr como se não houvesse amanhã. Transformaram a arte em consumo. Deixaram de ir ao cinema ganhar tempo, estão ali a perder tempo. Foi um filme chamado Tubarão, de um tipo que até é um intelectual, que nos matou a todos. O Tubarão abriu a boca e engoliu-nos a todos. Foi ele que inventou esta coisa do cinema enquanto espectáculo infanto-juvenil, com histórias curtas e grandes efeitos.

Mas isso não se aplica ao cinema português, que nem sequer tem orçamentos para esse tipo de cinema…

A grandeza do cinema português, que eu adoro, é que é um cinema sem pressão do mercado. Tenho uma liberdade que não tem preço: nunca fui obrigado a fazer qualquer coisa para ter público. Nunca filmei com essa pressão. Claro que quero que o maior número de pessoas veja os meus filmes, quero mostrar o que fiz, mas enquanto filmo não cedo a nada.

Existe um modo de filmar português?

Existe e tem a ver com os meios que temos para filmar. Por isso é que em Portugal encontramos personalidades incríveis no cinema.

Disse, em tempos, que não saberia fazer um filme com vários milhões de orçamento.

Pois não, faria dez filmes. Um filme nosso custa um décimo de um francês ou um centésimo de alguns americanos.

Qual foi o filme mais caro que fez?

Foi este. Tem um orçamento de um milhão e 200 mil. É um filme muito caro para Portugal, muito barato se fosse noutro país. Tem 52 actores, mil figurantes, décors que nunca mais acabam…

Foi subsidiado?

O filme teve muitos apoios. Ganhou o concurso no ICA, que deu menos de metade do custo, depois tive uma co-produção com o Brasil que deu para ter actores brasileiros e um engenheiro de som brasileiro. Depois ainda vendemos quatro episódios à RTP. Tenho três versões do filme: a versão curta para as salas, com duas horas; a minha versão, com três horas e que só passa no Cinema Ideal e nos Cineclubes; e os episódios para a televisão.

Existe cinema português sem subsídios?

Eu não conheço. Não há um único filme português que tenha sido pago com as receitas de bilheteira. Mesmo as comédias de que as pessoas falam, tinham subsídio e davam prejuízo em bilheteira. E aquilo não é cinema, porque eram todos iguais: é sempre sobre a ascensão da pequena burguesia.

E concorda com o sistema de atribuição de subsídios?

Dinheiros públicos têm de ser atribuídos com concursos públicos. Agora, a nomeação do júri pode ser discutida. Além disto, tem de haver muitos filmes. Nós fazemos menos filmes do que a Galiza. Houve um ano em que nem fizemos nenhum porque não houve dinheiro, agora estamos a fazer seis a oito filmes por ano, o que é ridículo. Se houver 20 primeiras obras, há de certeza duas ou três maravilhosas.

Um realizador que sucessivamente tem obras que não passam dos dez ou 20 espectadores em sala deve continuar a receber subsídios?

Depende. Há filmes maravilhosos que não têm espectadores na altura e que têm muitos passados alguns anos. E há um equívoco em Portugal. Querem uma imitação de indústria, mas então não podemos falar de espectadores, mas de dinheiro, que é o que fazem os americanos. Assim sendo, o cineasta português mais comercial chama-se Manoel de Oliveira. Uma venda de um filme do Oliveira para um segundo canal qualquer alemão rende mais do que 100 mil espectadores em sala aqui. Numa indústria o que interessa é quanto custou e quanto rendeu. E aí vamos ver quem ganha: se não são os tais que são 'mais artistas' e que passam a fronteira. Para mim não há cinema de autor e cinema comercial, porque todos querem ser as duas coisas. Mas a partir do momento em que há apoio da Secretaria de Estado da Cultura, têm de ser obras que só existem se forem apoiadas pelo Estado. As pessoas que querem mesmo fazer blockbusters têm bom remédio: emigrar para Hollywood ou para Bollywood. Eu não sei fazer aquilo. Aquilo é uma indústria, aqui o cinema é artesanato.

Sente-se castrado por ser subsidiado?

Até aqui, não. Nunca ninguém interferiu na criação. Só o [Alexandre] Valente, e aí saí. Comecei a trabalhar em gráficas muito novo e ganhava mil escudos para fazer capas para as editoras A Regra do Jogo e Afrontamento. Um dia, o Nelson de Matos ofereceu-me 20 vezes mais para ir para a Dom Quixote. Fui para casa, fiz uma maquete, umas artes finais e no dia seguinte fui lá ter com ele. Ele viu, achou bonitas e começou a dizer: 'Vamos só arredondar isto aqui, meter aqui outra coisa…'. Rasguei os papéis e fui-me embora. Não cedo a minha liberdade de criação, prefiro ir lavar escadas.

Quantos espectadores espera ter n'Os Maias?

Quero fazer 100 mil. No Desassossego fiz 40 mil, mas só tinha uma cópia. Andei com uma cópia e um projector pelo país. Agora vou sair com 20 e tal cópias na Lusomundo, mais a digressão. Mas há uma quebra enorme no número de espectadores. Com excepção para acontecimentos como a Gaiola Dourada, hoje quem vai ao cinema são miúdos entre os quatro e os 18 anos. A partir dessa idade descarregam os filmes em casa. É caro ir ao cinema porque não é só o bilhete, é a Coca-Cola, as pipocas, o transporte…

Já pensou fazer uma digressão com Os Maias como fez com o Filme do Desassossego, em que correu o país de Norte a Sul?

Já está decidido que vou fazer. Tenho contrato com a Lusomundo para estrear a 11 de Setembro e ficar até 11 de Novembro. Depois, de fins de Novembro até princípios de Fevereiro, vou outra vez aos Cineteatros todos mostrar o filme: aos miúdos à tarde e aos pais à noite. Faço uma aula sobre cinema, não há telemóveis, não deixo comer e falo de uma ideia que os deixa todos contentes, que é a ideia da liberdade. Mas explico que a liberdade tem um limite: incomodar o outro. Digo-lhes muitas vezes que, se não querem assistir, vão lá para fora, mas que quem fica, fica calado. Se em 200 pessoas, três quiserem ver, os outros têm de respeitar ou então saem e vão à vida deles. À noite faço sessões para os pais.

Sentiu o interesse das pessoas?

Em dois meses, fiz 170 sessões, normalmente cheias. Quando o professor é bom, a sessão corre muito bem. Quando o professor tem alguma promiscuidade com os alunos, quando o professor pede um isqueiro a um miúdo para fumar um cigarro, aquilo já não funciona tão bem. À noite as pessoas vestiam-se como se fossem ao teatro. Tive pessoas que já não iam ao cinema há 15 anos. E foram como se fosse um acto sagrado. No teatro também não comem nem bebem, porque é que o cinema não há-de ter a mesma dignidade? O cinema começou nas feiras e acabou nos centros comerciais mas, de vez em quando, temos de o tentar tirar dos centros comerciais. Temos de tentar que o cinema não seja fast food. E aproximar o realizador das pessoas. Hoje em dia, mesmo quando os miúdos gostam dos filmes demoram cinco segundos a ir à sua vida. Lembro-me do tempo em que as pessoas viam dez vezes o mesmo filme e conversavam sobre o que tinham visto. Hoje em dia o cinema é uma vertigem com 3.000 planos, mas quando há tantos planos ninguém vê nenhum.

Porque decidiu fazer a digressão?

Se sou apoiado pelo Estado, acho que é preciso devolver esse apoio, fazendo serviço público. É preciso ensinar as pessoas que o cinema são coisas muito diferentes, como Os Maias ou o Joe Dallesandro a dormir durante quatro horas, filmado pelo Warhol…

O Filme do Desassossego viveu muito tempo na sua cabeça antes de ganhar forma?

A primeira longa-metragem que fiz, a Conversa Acabada, sobre as cartas de Pessoa e Sá Carneiro, foi também o primeiro filme que fiz sobre o Pessoa, isto em 80. Quando chegamos ao cinema, temos a ambição de fazer uma coisa diferente, e, nessa altura, interessava-me um tempo português em que o modernismo era contemporâneo dos movimentos todos da Europa. Entre a I e a II Guerra Mundial surgiram os Dadas, os Modernos, o Picasso, o [Francis] Picabia, o [Georges] Braque… E no meio disto há meia dúzia de portugueses geniais, como o Pessoa, o Sá Carneiro, o Almada [Negreiros] e o Santa-Rita [Pintor], que criam um pequeno movimento que é tão forte como o que se passa no resto do mundo.

Começa aí a sua relação com o Pessoa?

Sim. E as pessoas não sabem, mas nessa altura tive a arca do Pessoa em casa. Tive em casa os óculos do Pessoa, a boquilha, a sua biblioteca, os originais todos… O Pessoa deixou 200 mil inéditos, quando morreu só tinha dois livros publicados. O Livro do Desassossego ainda não existia porque os manuscritos estavam espalhados na arca. Depois, quando as pessoas começaram a mexer na arca, misturaram tudo. Mas ele tinha deixado tudo organizado.

Logo nessa altura ficou com a ideia de um dia filmar o Livro do Desassossego?

Não. Um dia estava em casa, numa fase de uma crise terrível, e caiu-me o livro da estante. Comecei a ler aquilo e desatei-me a rir porque afinal a minha angústia não era nada comparada com a angústia que estava naquelas páginas. Li muitas vezes o livro, porque não escrevi nada, mas tinha de decidir o que cortar e o que usar no filme, criando uma narrativa. O próprio Pessoa ajudou-me. 

Como assim?

É que ele tinha três indicações no prefácio. Uma sobre a luz, que me tocou muito: a luz que ilumina as polainas das pessoas tem de ser igual à luz que ilumina a cara dos santos. Era uma coisa sobre a democracia da sombra e da luz. Depois tinha outra indicação sobre como o tempo do sonho não é o da vida: quando sonhamos ou é muito lento ou muito rápido, tem elipses, em 24 avos de segundo uma criança passa a adulta. E por fim tinha outra indicação sobre a oralidade: dizia que o Livro do Desassossego só existe lido, em voz baixa ou alta, mas desde que se oiça.

Filmar obras de autores que já não estão entre nós é potencialmente menos complicado do que filmar obras ligadas a pessoas ainda vivas, como foi Corrupção?

Não… O Corrupção foi um equívoco. Era para ser uma espécie de Tráfico 2, não era um filme sobre o Pinto da Costa e a Carolina Salgado. Eles eram o pretexto, mas o que eu queria fazer era o Diário de uma Criada de Quarto, que o [Luis] Buñuel adaptou. Mas tive o azar de ter um produtor idiota e comerciante que me refez a montagem toda. E eu vim-me embora. Aquilo era uma coisa sobre Portugal e tudo o que era juízes corruptos e jornalistas espancados, foi tudo fora. Era um filme de duas horas com 12 minutos de música com autores como [Arnold] Schoenberg e, de repente, era um filme de hora e meia com 70 minutos de música dos Linda Martini e que mais parecia um videoclipe… Mas não tem a ver com as pessoas estarem vivas ou não.

Foi contactado pelo próprio Pinto da Costa?

Fui muito insultado. Até os meus filhos foram insultados. E houve ameaças. Não podia ir ao Porto. Foi um bocado violento.

Nunca mais falou com Alexandre Valente?

Não. Nem falo. E já nem quero saber disso.

Este caso ilustra a forma como os realizadores estão à mercê dos produtores, que detêm o dinheiro?

Pois… Ainda por cima há uma coisa muito chata neste país: o cinema não existe sem apoio do Estado. Não há nenhum produtor que meta dinheiro – ao contrário do que se diz. Eles são gestores de dinheiros públicos. Os filmes deveriam ser do Estado e pagava-se os direitos de autor aos autores e um salário aos gestores desse dinheiro. Os filmes devem ser património público.

Em relação aos produtores, nunca teve problemas com Paulo Branco?

Fiz uns seis ou sete filmes com ele e ele nunca interferiu nem na criação nem na montagem. Fazíamos os filmes como queríamos, as virtudes e os defeitos eram dos realizadores. Quando ele foi demasiado ambicioso e começou a querer ter salas e distribuidoras, começou a tirar dinheiro dos filmes para as salas – que é o contrário do que os outros produtores fazem. Ao querer fazer um império de salas, entrou em decadência em relação ao cinema. A última zanga que tive com ele foi n'O Fatalista, em que tínhamos nove semanas de rodagem e ele, ao fim de seis e meia, disse 'Acabou'. Além disto, começou a querer impor equipas todas iguais para mim, para o [Manoel de] Oliveira, para o [Pedro] Costa. E isso não se faz porque nós somos todos diferentes. Só somos iguais na dependência dos apoios para filmar. E isso é um luxo, reconheço. Filmar é um luxo.

Disse que, depois de Corrupção, A Corte do Norte foi o filme que lhe salvou a vida…

Foi porque achava que não ia filmar durante uns tempos e de repente tive uma encomenda. Gostava muito do Zé Álvaro [José Álvaro Morais], era um amigo que andou dez anos à volta d'A Corte do Norte, mas o projecto dele era caríssimo. Entretanto ele morreu e o António da Cunha Telles tinha os direitos do filme, ganhou o concurso do ICA e pediu-me para fazer o filme porque eu era amigo do Zé Álvaro. Mas o guião que ele deixou não era grande coisa, fiz de novo e dediquei-lhe o filme. O [Manoel de] Oliveira já fez umas três Agustinas, mas tem uma ideia sobre as mulheres que não é a minha nem a da Agustina e que é que os homens são maravilhosos e as mulheres é que os destroem. Para a Agustina é o contrário: as mulheres é que movem o mundo. Eu quis fazer um filme do ponto de vista das mulheres, em que elas é que são fortes. Por isso é que a Agustina me escreveu uma carta a agradecer.

Mas por que diz que o filme o salvou?

Porque eu tinha desistido de filmar. Estava zangado com o cinema. Retirar o meu nome do filme foi a decisão mais difícil da minha vida como realizador. Mas aquilo era uma merda. O que foi apresentado não tinha nada a ver com o meu filme e ele foi um aldrabão. Estou até hoje em tribunal.

A Corte do Norte não foi o primeiro filme em que presta uma espécie de homenagem às mulheres. Filmou A Mulher que Acreditava ser Presidente dos Estados Unidos da América, com um elenco exclusivamente feminino.

Fui órfão muito cedo, e fui educado por uma avó e três irmãs que foram fantásticas comigo. Tenho a ideia da grandeza das mulheres que me educaram, que me fizeram. Os primeiros livros que li na vida foram da Condessa de Ségur, que aliás cito na cena final do Tráfico. E os meus filmes não são biográficos, mas têm muitas coisas minhas.

Como foi lidar com aquele elenco só de mulheres?

Não há um único homem ali. Chego a ter uma cena com 500 mulheres. À data esse filme foi maltratado e apelidado de maniqueísta, mas não é verdade. É, isso sim, o filme mais anarca que fiz: a Alexandra [Lencastre] é igual à Sarah Palin e ao professor Cavaco Silva. Deram-me algumas dores de cabeça, porque houve uma certa competição de beleza. Lembro-me que tinha agentes do FBI que eram interpretadas por modelos e as mais velhas ficaram furiosas e não as queriam ao lado delas. E depois as mulheres conseguem ser muito cansativas. Falam, falam, falam…

Quais as primeiras recordações que guarda da infância?

Nasci em 1949, em Lamego, mas por acaso, porque a família era toda de Vila Real. Nasci em Lamego porque os meus pais eram professores primários e estavam lá a dar aulas. Aos 11 voltei para Vila Real.

Mas o que se lembra de Lamego?

São recordações muito chatas, de frio e de morte. No cemitério de Lamego, onde nunca entrei, tenho a campa da minha mãe, que morreu quando eu tinha seis anos, do meu pai e do meu irmão mais velho que morreu aos 20 anos, num acidente enquanto piloto da Força Aérea. E depois tenho uma ideia de frio, porque estudava numa escola onde todos andavam descalços na neve, com os pés enrolados em trapos. Eu era o único com sapatos.

Tem recordações da sua mãe?

Tinha uma boa cara. Era muito simpática. E lembro-me de cheiros. Tinha umas tias, irmãs da minha mãe, com uma quinta ao pé da Régua onde eu ia passar férias. Nos últimos anos fui várias vezes àquela zona filmar e sempre que chegava sentia o cheiro a cebolas frescas, a saladas, às uvas e aos lagares… Lembro-me dos lagares dessa quinta onde ia com os homens comer bacalhau desfiado com uma gota de vinho. Fui educado por mulheres.

O seu pai não foi uma figura presente na sua vida?

O meu pai ficou muito sério e austero, muito crispado e silencioso com a morte da minha mãe e do meu irmão. Lembro-me que ninguém falava às refeições. E ninguém falava da morte. Os portugueses têm uma má relação com a morte.

Nunca falaram consigo sobre a morte da sua mãe?

Nunca. Foi um silêncio absoluto. O meu pai não era má pessoa, mas era um homem desfeito. E nunca se voltou a casar, o que o tornou um homem escuro. Foram as minhas três irmãs mais velhas, e uma avó que foi uma espécie de segunda mãe para mim, que me criaram. Fui muito protegido, mas assim que pude saí de casa. Aos 16 anos fui para Coimbra. 

Mas antes disso, aos 11, foi para Vila Real.

Fui para o liceu. Mudou-se a família toda. Aí já tenho recordações mais alegres. Foi uma fase de maior rebeldia, do início da adolescência. Era muito bom aluno, tinha grandes notas, mas recebia castigos no liceu porque gostava de pregar partidas. Lembro-me de ser suspenso porque, com uma tertúlia de amigos, escrevi umas coisas estilo teatro de vaudeville em que me meti com um professor que era um chato. Também foi nesta altura que comecei a jogar futebol no Vila Real. Mas aquilo eram tempos muito esquisitos, porque a educação era separada e havia uma repressão imensa sobre os comportamentos. As brincadeiras eram para os rapazes, as raparigas só brincavam em casa. Ninguém podia andar de mão dada na rua e muito menos dar um beijo. Tudo era conservador e ainda mais na província.

Portanto, já nessa altura estava consciente do regime?

Completamente. Vivi no Salazar duro, no liberalismo do Marcelo e no 25 de Abril, que foi o dia mais feliz da minha vida. Adoro os meus filhos, mas ninguém me tira aquele dia e aquele ano. As pessoas não dão conta do que se passava… Três pessoas juntas na rua era proibido, vivia-se na miséria… Em Trás-os-Montes comia-se carne duas vezes por ano, de resto era sopa e batatas. O discurso era: 'Sofram na terra porque depois têm o Reino dos Céus'. Tive a sorte de me ir embora muito cedo. Fui para Coimbra porque tinha família no Porto.

Como assim?

Devia ter ido para Arquitectura, porque era muito bom aluno a matemática e a desenho. Mas não havia o curso em Coimbra, só no Porto, e eu não queria ir para o Porto porque tinha lá família e não queria continuar a viver com a família. Por isso acabei por ir para Engenharia Mecânica, em Coimbra. Estive lá dois anos a estudar e a achar que ia ser engenheiro. E depois dá-se o 69…

Mudou-lhe a vida?

Foi a revolução dos costumes, a revolução sexual, o podermos dormir com pessoas iguais a nós em vez de nos iniciarmos nas prostitutas. E depois era a questão da guerra colonial, com movimentos anticolonialistas incríveis. Na altura do Marcelismo criou-se uma espécie de heterotopia em nós eramos relativamente livres dentro de Coimbra. Mas, por exemplo, quando estávamos no CITAC [Círculo de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra], sempre que saíamos de Coimbra eramos presos.

Nesse período em que passou pelo CITAC ponderou ser actor?

Eu fui actor, fiz A Excepção e a Regra, do Brecht! E depois fui para a direcção do CITAC. Era muito engraçado porque todos os encenadores que colaboravam connosco eram postos na fronteira. Lembro-me do Ricardo Salvat, um catalão comunista que veio para cá e fez uma obra sobre a miséria e a emigração na Galiza, que era uma forma de falarmos de Portugal sem ser assumido. E no ano a seguir veio o Juan Carlos Oviedo, um argentino meio hippie, que fez o espectáculo mais anarca que vi na vida, chamado Macbeth, Que Se Passa Na Tua Cabeça?. Todos foram postos na fronteira. Ainda assim chegámos a fazer digressões de sucesso, como uma em Itália que foi estrondosa.

Mas como é que uma ditadura, que punha esses encenadores na fronteira, depois permitia que fossem em digressão?

Porque deixaram uma abertura em relação à Universidade de Coimbra de forma a compensar a mobilização forçada de muitos estudantes. Eu, se tivesse sido mobilizado, fugia.

Quando começou a pensar no cinema?

Devo o vício do cinema à coisa mais parva do mundo: a praxe. Na minha altura, os caloiros tinham de recolher às seis da tarde e eu ia enfiar-me no cinema todas as noites até à meia-noite. Via tudo, os filmes bons e os maus. E depois estive no Cineclube de Coimbra onde cheguei a ver 12 vezes O Último Ano em Marienbad, de Alain Resnais.

Mas quando decide trocar de curso?

Estive em Coimbra quatro anos, dois dos quais a estudar Engenharia. Depois dá-se a crise de 69 e passei os dois anos seguintes sem ir às aulas e perdi a bolsa que tinha da Gulbenkian. Nessa altura a minha aprendizagem foi mais a aprendizagem colectiva. Além disso, já fazia alguns trabalhos gráficos, como capas de livros, e comecei a ganhar dinheiro. E ia à boleia até França, Inglaterra, Holanda e depois trabalhava em fábricas e restaurantes em Paris. Lembro-me de andar a trabalhar numa fábrica de chocolates cá em Portugal e depois fui para Paris e gastei o dinheiro todo na Cinemateca – em 15 dias vi quase 100 filmes. Nisto, ainda em Coimbra, estive seis dias preso porque fazia parte dos Alfatá e metíamos pregos para os cavalos e para os carros da polícia. Depois disso fui para o Porto.

Estudar cinema?

Não, fui estudar Engenharia na mesma. Ainda fiz mais dois anos, só me faltam duas cadeiras que até já me ofereceram, mas eu não quero ser engenheiro. Quando fui para o Porto passava muito tempo com o meu grande companheiro, que me deixou há dois anos, o Manuel António Pina. Andávamos juntos para todo o lado a ver filmes. Se não havia nada no Porto, íamos a Espinho, à Póvoa… E havia um grupo engraçado, o do Piolho, onde estava todos os dias, à conversa. Mas no Porto o trabalho político foi muito mais duro. Íamos para as fábricas passar panfletos, fazíamos murais anticoloniais, fui da FECML [Frente Eleitoral de Comunistas Marxista-Leninista], que é uma espécie de MRPP dos pobres, mas mais normais. Vi arraiais de pancada da PIDE, de uma pessoa ficar toda partida. Durante dois anos andei na clandestinidade do Porto, com a PIDE atrás de mim. Eles iam a Vila Real e a família dizia que eu estava no Porto e vice-versa. Ainda assim, depois, durante dois meses ainda dei aulas de física e desenho de máquinas numa escola técnica em Matosinhos. E dá-se o 25 de Abril.

Chorou nesse dia?

Dezenas de vezes, mas de alegria!

O que recorda desse dia?

Cheguei à escola e o director demitiu-se. Ainda fui lá mais dois dias e arranquei para Lisboa. Aluguei um quarto em casa de um amigo, na Graça. Depois veio a minha namorada e alugámos um outro quarto. Durante um ano foi muito duro, mas sentia uma alegria imensa. Lembro-me de fazer uma refeição por dia, a meias. Não havia dinheiro, não havia nada, mas sentia uma alegria que nunca mais acabava. Depois finalmente fui para a escola de cinema. Quando lá cheguei já passava dos 25 anos, os meus colegas mal tinham 20. Aprendi muito, não nas aulas, mas em dois seminários: um com um tipo dos Cahiers du Cinéma e outro com um tipo de som que nos mandou fazer filmes de som, sem imagens. Ainda na escola fiz uma revista de cinema, a M, que durou quatro números, e organizei a Semana dos Cahiers. Mas não se aprendia nada ali. E entretanto comecei a filmar.

A sua estreia como realizador foi com que obra?

Foram duas curtas para a RTP sobre a educação permanente [O Alto do Cobre e Um Projecto de Educação Popular]. Mas fizemos uma coisa radical e fomos logo expulsos do projecto. Depois começaram os concursos do ICA e havia uns para primeiros filmes. Éramos 16 a concorrer para oito lugares. Era fácil. Fiz o Alexandre Rosa, uma coisa Godardiana, inspirada no Vladimir e Rosa. De seguida, em 1980, fiz a minha primeira longa-metragem, a Conversa Acabada.

E nunca mais parou?

Quer dizer… Internacionalmente o Conversa Acabada correu muito bem e quando uma coisa corre bem no estrangeiro somos castigados. Estive cinco anos para conseguir mais um filme. Lembro-me de ter ganho um concurso com o filme Um Adeus Português e esse concurso, no tempo do Lucas Pires, foi anulado. Só voltei a filmar em 1985. Nesse intervalo fiz muito trabalho gráfico.

Quem o castigou?

Os colegas mais antigos, aqueles que não passavam a fronteira. Eu era um realizador recente e que vinha do Norte. Uma das coisas que sempre me correu mal em Lisboa foi dizer o que penso. Aqui havia um cinismo para o qual não estava preparado.

Os prémios para os quais foi sendo nomeado foram importantes nesse processo de aceitação?

Os prémios dão jeito na divulgação, mas não alteram os filmes em nada. Gosto da frase do Godard: 'Quero ver é o progresso das ideias e das formas e não o sucesso das coisas'. As pessoas hoje querem é aparecer nos jornais, daí as selfies. Já que não conseguem aparecer nos jornais, põem no Facebook. Nem tenho computador, escrevo à mão.

Qual o filme da sua vida?

O Amor de Perdição foi um filme que mudou a minha vida. E foi um filme tratado abaixo de cão em Portugal. Só quando foi reconhecido lá fora é que passou a ser uma obra-prima cá. Eu assisti às filmagens, quando estava na Escola de Cinema. Passei lá um mês e foi quando conheci o Manoel de Oliveira. Todas as noites ia ter com ele e encontrava-o a ver novelas – para não pensar em mais nada – e a beber um uísque. Ensinou-me muita coisa. Vi-o a decidir os planos com cordas e pregos, parecia um jardineiro. Das coisas que conto sempre é quando ele me disse que, quando não há dinheiro para filmar a carruagem, filma-se a roda. Mas tem de se filmar bem a roda. Nesse filme há um plano de sete minutos de uma roda, que foi uma invenção dele, com um espelho por dentro para não parecer que a roda anda ao contrário.

Em tempos era visto como o realizador católico? É, de facto, católico?

Há muito tempo que não sou. A cristandade ainda pode ter alguma coisa interessante, mas o catolicismo não. É feito por uma hierarquia para reprimir as pessoas com a ideia de pecado e de culpa. As pessoas são todas diferentes. Um bandido pode ser uma pessoa maravilhosa num momento da sua vida e o contrário também pode acontecer.

Mas tem momentos em que recorre à fé?

Há muitos anos que não. Nem quando estou doente. Quer dizer, doente já não estou há oito anos.

Tem a data assim tão presente?

Sim, lembro-me. Mas isso não interessa nada…

Deve interessar, para se lembrar de forma tão peremptória.

Mudou-me a vida. Foi a seguir a essa doença que encontrei o Livro do Desassossego. E que decidi não voltar a ser doente na vida. E não sou. Acordo todos os dias bem-disposto. Tenho três filhos maravilhosos.

É preciso situações-limite para despertar para a vida?

Sim, coisas-limite, catástrofes… Vou contar: eu matei um cancro. E a partir daí a vida ganhou outra dimensão. Passei a estar no Alentejo, olhar para o céu numa noite estrelada, e perceber o quão ridículos somos. E aprendi que não tenho certezas, só dúvidas. As pessoas que têm muitas certezas normalmente são autoritárias, eu prefiro dar sem querer nada em troca. 

Costuma dizer que o seu lado mais boémio é recente na sua vida. Teve a ver com o cancro?

Sou noctívago. Em Coimbra, levantava-me às quatro da tarde e passava a noite na conversa. O sol magoa-me os olhos. Não consigo acordar cedo. Costumo dizer que a minha grande refeição é o jantar. Ao meio-dia, para mim, é pequeno-almoço. Mas quando se tem filhos, muda-se a vida. Mudei a vida e foi maravilhoso, mas sou da noite. Sempre gostei da noite. Só que as pessoas estão equivocadas quando pensam que sou um boémio. Este ano fiz quatro filmes e uma instalação. Nunca trabalhei tanto e tive tão pouco dinheiro. Em 65 anos, nunca tive uma conta bancária positiva. Tive sempre um sinal negativo. E eduquei três filhos. Nunca tive uma boa relação com o dinheiro, nunca aforrei. E não tenho gastos especiais: nem automóvel tenho. Mas nunca recebi direitos de autor porque em Portugal não se paga, mas tenho colegas em França que fizeram três filmes e vivem de rendimentos. Quando não há trabalho, invento. Prefiro filmar a estar parado.Que fascínio é esse pela dança que, inclusive, o levou a intitular a sua exposição no Centro Internacional das Artes, em Guimarães, roubando uma frase de Nietzsche: Só Acredito Num Deus que Saiba Dançar? Sempre dancei. Quando era miúdo, o professor era uma pessoa importante, que ia ao Clube juntamente com os aristocratas. Mas para estar no clube era preciso saber dançar, mesmo nos bailes para os miúdos. E eu ia e dançava tango, valsa, chachachá… Aos 11 anos comecei a dançar.

Nunca mais deixou de dançar?

Nunca. Lembro-me que já em Lisboa, antes de ter filhos, e numa altura em que não tive muito trabalho, passei um ano na noite. Começava na Gruta, ao pé da Trindade, onde esperava a Leonor [Pinhão], com quem vivi muitos anos. Descíamos ao Cais do Sodré e, com um grupo de amigos, inventámos o Jamaica. Eramos nós, o António Caeiro, o Alexandre 'Alhinho' Oliveira e outros. O Mário Dias punha reggae, mas aquilo ainda era um bar de prostitutas. Nós é que começámos a levar coisas como a Patti Smith e passávamos a noite a dançar. Dali íamos para o Ritz Clube e acabávamos na cave do Galo, um sítio que abria às 3h e fechava às 7h ou 8h e que juntava os bandidos todos. Ali ninguém agredia ninguém, era uma espécie de pausa dos bandidos, mas via-se facas, pistolas… Durante um ano fazia este percurso todas as noites. Lembro-me de um miúdo, que era carteirista, mas só guardava o dinheiro e os cartões do Benfica. Tinha 300 e tal. Conheci-o quando me roubou a carteira.

Ficou-lhe com o cartão do Benfica?

E com o dinheiro. Mas ficámos amigos. Era uma pessoa muito engraçada.

A propósito, como vai o seu benfiquismo?

Ligo menos ao futebol agora. Serei sempre do Benfica, mas hoje em dia há muito negócio no futebol e eu gosto é do jogo. Claro que continuo a ver os jogos todos, mas por vezes ver o Real Madrid – Bayern de Munique é mais interessante do que ver o Benfica – Arouca. No entanto, já fui mais vezes ao estrangeiro com o Benfica do que com o cinema.

Hoje em dia como é uma noite sua?

É muita coisa, tenho programas para todos os dias. O Lux é a minha casa, à 5.ª, 6.ª e sábado acabo lá. É o sítio onde me incomodam menos. Nos outros sítios põem a mão e dizem que gostam muito do meu trabalho mesmo que nunca o tenham visto… Depois vou ao Snob jantar, vou à Capela, ao 49, ao Purex. Tenho lá amigos e há boa música. Sobretudo à 5.ª desço ao Cais do Sodré, gosto do Mikas e da Velha Senhora, do Sol e Pesca e do Lounge.

Perguntam-lhe muitas vezes como é possível ter toda essa energia aos 65 anos?

Não percebem nada, acham que são produtos artificiais. Mas não são. Eu nasci num caldeirão de speed. E também tem a ver com o facto de não precisar de me levantar antes do meio-dia.

É natural que se associe essa energia ao consumo de drogas.

Toda a gente já tomou essas coisas. Eu, as mais duras, nunca tomei. Tenho medo de agulhas. O resto tanto faz.

Mas foi tendo curiosidade de experimentar?

Quando era miúdo, sim. Lembro-me de vir de Coimbra a Lisboa para essas coisas. Mas as drogas têm uma coisa chata, que é quando as pessoas ficam dependentes, quando a droga é que manda na vida. Isso é uma desgraça. Eu sou pelo [Albert] Hofmann. Aos 80 e tal ainda tomava ácidos e um dia perguntaram-lhe: 'Sr. Hofmann, por que é que ainda toma ácidos?'. E ele disse: 'Para ter o direito a ver as cores todas do mundo, ouvir os sons todos do mundo e regressar à infância'. Isso é uma boa atitude em relação às coisas. Agora, quando aquilo destrói vidas, isso não.

E o Sr. Botelho, ainda toma uns ácidos?

Muito raramente! [risos]

Muitas vezes, na noite, está acompanhado por pessoas mais novas. É um exercício vampírico de roubar a juventude alheia?

Não. Tem a ver com o facto de eles dançarem melhor do que os mais velhos. Mas nunca engatei ninguém a dançar. Quando se dança não se pensa em nada.

Há noites em que sente os 65 anos?

Não. Nunca senti isso. Ninguém tem pedalada para me acompanhar. E tanto gosto de música electrónica e de trance como gosto de ópera. Há sempre coisas novas e as pessoas não podem parar. Hoje em dia há música electrónica com melodias incríveis, que nos levam em viagens.

Quando sai à noite encontra os seus filhos?

Encontro, mas sempre que os encontro mudo de sítio. Eu não sou amigo deles, sou pai.

São três?

Sim. Uma filha, a Joana, que vai fazer 23 anos, o António que fez 28 e o Francisco, que vai fazer 34.

E todos têm ligações ao cinema?

Os atrasados mentais! Queria médicos ou financeiros, mas estão todos no cinema. O Francisco já foi meu assistente, agora é assistente principal do Oliveira e vai fazer a primeira longa. O António trabalha no canal Q, mas também tem feito uns filmes dele. E a Joana ainda estuda, mas já tem trabalhado como actriz.

Tentou impedir essa opção pelo cinema?

Não. E nunca falo sobre o trabalho deles antes de estar pronto. Nunca vejo nada antes de estar concluído. Não me meto nisso tal como não me meto nos namorados e namoradas. Se exijo liberdade para mim também tenho de a dar.

Viveu muitos anos com a mãe dos seus filhos, Leonor Pinhão.

Foram 28 anos, o que é recorde do mundo no meio artístico. [risos] Conheci a Leonor na escola de cinema. Entretanto ela começou a trabalhar com amigos meus como o Ricardo Pais e aproximámo-nos. Depois tivemos filhos e os anos foram passando. Gostávamos ambos de futebol e do Benfica. De cinema, de literatura… Depois acabou. O primeiro ano foi complicado, parece que perdemos o pé. Mas depois a vida continua. E só tenho memórias boas.

Não será a falta desse companheirismo que o leva a sair todas as noites?

Não, tenho muitas companheiras! [risos] Fui namoradeiro durante anos, mas depois, durante estes 28 anos, tive uma relação estável. E nós bastávamo-nos. Talvez esse isolamento tenha sido um erro, não éramos muito sociáveis.

O facto de ter sobrevivido a um cancro deixou-o com mais medo de morrer?

Nada. Ainda ontem tive uma discussão com o Luís Miguel Cintra. Ele queria-me convencer a voltar à Igreja Católica, porque estamos todos a morrer. E eu disse-lhe: 'Oh Luís Miguel, já fizeste tantas coisas boas, qual é o teu problema?'. O meu sonho é morrer atropelado numa passadeira, assim de repente. Ou ter um AVC numa noitada. Tudo o que for de repente é bom. A única coisa que me chateia é precisar de ajuda. Isso não quero, mais vale o suicídio. Não poder dançar seria uma chatice. Ainda hei-de dançar de cadeira de rodas. 

raquel.carrilho@sol.pt