A chefe da Avenida

“Acho que os adultos precisam da cozinha para se sentirem novamente crianças”, defende Marlene Vieira. Uma ideia que já alimentava há muito, mas que saiu reforçada depois da primeira experiência enquanto membro do júri da Chef’s Academy, o programa da RTP que procura ensinar a cozinhar e que a 13 de Setembro regressa para a…

“Acho que os adultos precisam da cozinha para se sentirem novamente crianças”, defende Marlene Vieira. Uma ideia que já alimentava há muito, mas que saiu reforçada depois da primeira experiência enquanto membro do júri da Chef's Academy, o programa da RTP que procura ensinar a cozinhar e que a 13 de Setembro regressa para a segunda edição. “Foi muito positivo ter esta oportunidade e perceber que as gravações acabavam à uma da manhã e as pessoas iam para casa cozinhar. Escolhemos os piores dos piores, como o Ameixas, que nem sabia os nomes dos ingredientes, e que saiu dali a conseguir fazer um jantar para os amigos. Houve coisas que custaram muito a comer porque estavam picantíssimas ou carregadas de azeite, mas provei tudo o que foi feito”. A primeira edição do programa foi também a primeira experiência em televisão para Marlene Vieira. E, apesar de todos os receios – nomeadamente que a “achassem muito bruta” -, a chefe aprendeu “a gostar e a descontrair nas gravações”.

Até participar na Chef's Academy, Marlene Vieira era um nome e um rosto praticamente desconhecido fora do meio da restauração. Mas já contava com um currículo extenso, liderando desde Maio de 2012 a cozinha do Avenue. Inicialmente o restaurante tinha uma cozinha “mais confortável de sabores portugueses” e hoje em dia propõe sabores mais “contemporâneos”. A mudança reflectiu, sobretudo, o espírito da própria equipa e o desejo de ajudar a afirmar a cozinha portuguesa. “Portugal está perdido na gastronomia mundial, porque tem uma cozinha rústica. Temos sabores belíssimos, que toda a gente adora, só que não é colocada a par com a cozinha francesa, italiana ou japonesa porque nos falta a parte sofisticada. Sentimos necessidade de elevar a cozinha, até porque estamos nesta avenida, ao lado das melhores marcas”.

O grande desejo da chefe é que o Avenue seja uma referência para os bons garfos. E que consiga conquistar uma estrela Michelin. “A estrela não é a coisa mais importante do mundo, mas é algo que queremos atingir, porque é um guia que nos leva a todo o mundo e o que queremos é que cada vez mais pessoas conheçam o restaurante. Mas é uma luta”.

Metódica e quase obsessiva, para Marlene Vieira essa luta passa também por se afirmar como mulher e líder num mundo predominantemente masculino. “Sinto que as coisas mudaram, as pessoas que trabalham na cozinha têm mais cultura e formação, normalmente vêm de outras áreas, não são tão grosseiros e por isso também lidam de outra forma com as mulheres chefes”.

Outra coisa que mudou foi a forma como os profissionais de cozinha são vistos. Outrora uma profissão menor, nos anos mais recentes os chefes passaram a ser uma espécie de rock stars. Enquanto docente na Escola de Hotelaria, Marlene Vieira confessa que vê estas mudanças espelhadas nos seus alunos. “Primeiro é preciso querer ser cozinheiro, só depois chefe. Se todos os cozinheiros quisessem ser chefes, quem é que cozinhava? Ser jogador de futebol ou treinador são duas coisas diferentes… Um chefe de cozinha tem de se saber rodear de grandes cozinheiros, tal como os treinadores precisam dos melhores jogadores. Digo sempre aos meus alunos que formo cozinheiros, não chefes”.

Mulher do Norte, Marlene cresceu numa família proprietária de um talho, mas a sua primeira relação com a comida foi péssima. “Só comia ovos estrelados, carne crua quando estava marinada para fazer os chouriços, sopas de cavalo cansado ao domingo e pouco mais”. Quando tinha 12 anos, foi trabalhar um Verão para um restaurante de uma jovem cozinheira que era fornecido pelo seu pai. “E descobri que a cozinha é um vício. Ficava na cozinha horas a tentar fazer pratos diferentes. Comecei a cozinhar e foi só nessa altura que comecei a comer”. Boa aluna, a cozinha trocou-lhe as voltas e em vez de seguir o sonho de se tornar professora seguiu para a Escola de Hotelaria de Santa Maria da Feira. “Tinha um professor que tinha saído da tropa e as aulas pareciam a tropa, que era algo que também me passava pela cabeça. Adorei, apesar de ter sido muito castigada porque era respondona”. Resistiu e encontrou o seu caminho.

Terminou o curso e, depois de um ano a trabalhar como monitora estagiária, no Porto, regressou à cozinha: primeiro no Forte de São João Baptista, depois num restaurante português em Nova Iorque e, no regresso a Portugal em 2003, no Sheraton Porto, no Degusto de Vítor Claro, no West In Campo Real, no Manifesto de Luís Baena e, finalmente, no Avenue. Mais recentemente concilia a cozinha do Avenue com um espaço que assina no Mercado da Ribeira. “Antes do programa as pessoas não sabiam quem eu era. Hoje há pessoas que vão ali só para nos ver, que querem tirar fotos e conversar”.

De segunda a sexta, Marlene Vieira trabalha das 9h30 até depois da meia-noite, mas quando chega a casa ainda vai ler livros de cozinha. Ao fim-de-semana gosta de cozinhar em casa. “Sobretudo cozinha tradicional, como assados”. Mas tem de disputar a cozinha com o marido, João Sá, também chefe. “Somos dois galos, é difícil estarmos juntos na cozinha, mesmo que seja em casa”. 

raquel.carrilho@sol.pt