Os dilemas da ‘Schindler holandesa’

Na primavera de 1941 uma judia de nacionalidade holandesa chegou a Lisboa com o objectivo de negociar o resgate de milhares de judeus das garras dos nazis.

Gertrude van Tijn havia nascido na Alemanha em 1891 e casara com um holandês, tendo vivido na Suíça, África do Sul e México. De regresso à Holanda em 1932, começou a desenvolver contactos para dar apoio a refugiados judeus em trânsito para o continente americano. Essa tarefa iria não só consumir-lhe anos de esforços como pôr em risco a sua própria vida. Em 1943 chegou a escrever cartas de despedida aos filhos: “Tenho sido muito pressionada para tentar salvar-me; no entanto, por qualquer motivo, não sou capaz”. Depois disso esteve presa no campo de concentração de Bergen-Belsen, na Alemanha.

A história de Gertrude van Tijn é contada por Bernard Wasserstein, professor de História Judaica Moderna na Universidade de Chicago (EUA). No livro Do Holocausto à Salvação (Vogais) relata os dilemas desta 'Schindler holandesa' e como o facto de ter negociado com as SS lhe valeu acusações de colaborar com os nazis.

Quando e como tomou conhecimento da história de vida de Gertrud van Tijn?

Encontrei Gertrud van Tijn pela primeira vez enquanto estava a fazer a pesquisa para o meu livro anterior, Na Véspera: Os Judeus da Europa antes da Segunda Guerra Mundial. Na década de 1930, Gertrude, trabalhando a partir de Amesterdão, foi uma figura pioneira no esforço internacional de prestar auxílio a refugiados judeus do nazismo. Então cruzei-me com a sua autobiografia não publicada num arquivo em Nova Iorque, que falava em detalhe sobre os seus esforços continuados durante a II Guerra Mundial para auxiliar as vítimas do nazismo. Não só era uma história fascinante como levantava questões morais fundamentais e por isso decidi escrever um livro sobre como ela enfrentou estes desafios.

Por que é que, em inglês, o seu livro tem como antetítulo 'A Ambiguidade da Virtude'? Foi por Gertrude, para cumprir a sua missão, se ter visto obrigada a negociar com 'o diabo', ou seja, os nazis?

O título é um eco deliberado do famoso subtítulo de Hannah Harendt no seu livro Eichmann em Jerusalém: A Banalidade do Mal. Nesse livro Arendt ataca ferozmente os 'Conselhos Judaicos' nomeados pelos nazis na Europa ocupada, denunciando-os como colaboracionistas e instrumentos dos nazis. Eu vejo a história de Gertrude em grande medida como uma rectificação do ataque de Arendt. Por estranho que pareça, as duas mulheres tinham muito em comum: provinham de backgrounds idênticos; ambas trabalharam em prol dos refugiados na década de 30; tinham convicções políticas semelhantes; e até estiveram em Lisboa ao mesmo tempo, em Maio de 1941, embora, tanto quanto sabemos, não se tenham encontrado.

Podemos fazer um balanço de quantas vidas Gertrude conseguiu salvar?

Sim, no final do meu livro tento justamente fazer esse balanço. Entre 1933 e 1944 pelo menos 22 mil judeus conseguiram fugir de territórios nazis graças ao trabalho de Gertrude e dos seus colaboradores. Foi um enorme feito face à miríade de forças em conflito que tiveram de enfrentar.

Gertrude teve mais de uma oportunidade de escapar para os EUA ou para outro território neutral, mas não o fez. Houve outros casos de pessoas que se 'recusaram' a serem salvas?

Sim, refiro outros casos no meu livro. Por exemplo, algumas das principais figuras da comunidade germano-judaica, que insistiram em ficar na Alemanha de forma a poderem ajudar os velhos, os doentes ou outros apelidados 'não-arianos' que não podiam partir. A maioria deles pereceu nos campos da morte.

Em que factos se basearam aqueles que acusaram Gertrude de colaboracionista?

Depois da II Guerra os Conselhos Judaicos adquiriram a terrível reputação de terem cooperado com os nazis na destruição do seu próprio povo. Gertrude nunca foi mesmo um membro do Conselho de Amesterdão (só os homens podiam ser membros) mas era a chefe do seu departamento de emigração e como tal foi julgada pela mesma medida. De forma a resgatar pessoas da Europa ocupada, em várias alturas ela foi forçada a negociar com as autoridades nazis e isso levantou suspeitas quanto às suas motivações.

Lisboa tem bastante protagonismo no seu livro. Pode descrever um pouco do ambiente da cidade durante a guerra?

Gertrude viajou da Amesterdão ocupada para Lisboa em Maio de 1941, com o intuito de negociar a passagem de grandes números de refugiados judeus da Alemanha e da Holanda em trânsito para as Américas. Como potência neutral, Portugal era na altura um refúgio num continente dominado pelos nazis. Lisboa estava repleta de refugiados, sobretudo judeus desesperados por chegarem à América. O escritor Arthur Koestler, que tinha passado por ali alguns meses antes, chamou à cidade “o gargalo da Europa, o último portão de um campo de concentração que se estende por grande parte da superfície da Europa aberto para o exterior”. “A procissão de desespero”, escreveu Koestler, “continuava, correndo através deste último porto aberto, a boca escancarada da Europa, vomitando o conteúdo do seu estômago envenenado”. Koestler tinha uma tendência para exagerar. Mas penso que neste caso as suas palavras correspondem à sombria realidade. 

 jose.c.saraiva@sol.pt