O terceiro homem

Discute-se sobre quem venceu os dois primeiros debates televisivos entre António José Seguro e António Costa. Seguro terá sido mais genuíno nos compromissos assumidos, nomeadamente quando promete demitir-se da chefia do Governo se falhar o objectivo de não aumentar os impostos. Mas a sua imagem pueril passa mal perante o calculismo de um Costa bem…

A questão é que há um terceiro homem atravessado entre os dois candidatos às primárias do PS. Adivinharam, é José Sócrates. O fantasma do passado que ele representa continua a pairar sobre o destino político do Partido Socialista e a alternativa de governo que o vencedor do escrutínio de 28 de Setembro se propõe apresentar ao país. Por coincidência, esse fantasma irrompeu há poucos dias nos bastidores da sentença do processo Face Oculta, através da condenação de alguns notáveis socialistas, como Armando Vara e José Penedos, por tráfico de influências e corrupção.

Face Oculta não é apenas um fait-divers: dá-nos um retrato dos costumes políticos portugueses que seria demagógico generalizar – ou reduzir a um pecado nacional – mas que, por isso mesmo, não devem ser encarados com cínica condescendência.

A promiscuidade entre poder político e negócios privados (desde a sucata aos grandes empreendimentos e à banca) foi-se banalizando ao longo do tempo, envolvida num ambiente de indiferença ética ou impunidade criminal que este último processo veio inesperadamente perturbar. 

As práticas subterrâneas do clientelismo afectaram sobretudo, por razões óbvias, os dois maiores partidos, com maior incidência em períodos de maiorias absolutas ou de governação com pendor mais fechado ao escrutínio público (e judicial), como aconteceu, precisamente, durante o consulado de Sócrates.

Seria injusto atribuir a Sócrates a responsabilidade solitária por uma deriva em curso acentuado desde o cavaquismo (recorde-se o rasto deixado pelo BPN). Mas a roda da impunidade foi girando até proporcionar o clima em que a euforia das grandes obras públicas degenerou em negócios ocultos nas mais diversas áreas de actividade – e susceptíveis de atrair o novo-riquismo político e empresarial (como o negócio das sucatas). Sabemos hoje que o monstro do BES tomou a sua forma consumada durante a era socrática, a ponto de tornar-se o símbolo maior desses tempos.

António José Seguro reivindica-se mais distanciado e inocente em relação a essa época, enquanto António Costa – que rejeitara assumir a liderança do PS na sequência da demissão de Ferro Rodrigues, impedindo assim a ascensão de Sócrates – surge claramente comprometido com a última governação socialista (sendo, aliás, apoiado pelo anterior primeiro-ministro nesta disputa). 

Mas o certo é que, apesar do distanciamento de Seguro e das actuais críticas retrospectivas de Costa, nenhum deles se mostra capaz de cortar radicalmente com esse passado que explicaria – segundo Seguro – a falta de confiança de uma grande parte dos eleitores indecisos no Partido Socialista. Ou seja: o resultado das últimas eleições europeias, que Costa atribui à falta de liderança de Seguro, é associado pelo actual secretário-geral do PS à herança de Sócrates. 
E, no entanto, o que sobretudo os une é, além da semelhança das propostas – mais abertas com Seguro, mais fechadas com Costa -, a dificuldade de lidar com os fantasmas do passado.

É, de facto, todo um passado a pesar no quotidiano partidário e não apenas se tivermos em conta as patéticas golpadas pré-eleitorais em algumas federações do PS – os tais mortos a votar e os tantos militantes sem familiaridade conhecida mas morando na mesma casa… – que envolvem apoiantes das duas candidaturas. Há, além disso, as sintomáticas conexões clientelistas entre o PS e o PSD, nomeadamente através das Jotas, de que um dos exemplos mais reveladores é o do presidente da Federação de Lisboa, Marcos Perestrello, homem-chave do aparelho de Costa e ex-sucessor de Miguel Relvas (ele mesmo…) na famosa empresa fantasma Finertec… Hoje, Perestrello é considerado um dos artífices da espectacular vitória de Costa – por 80 por cento de vantagem – na Federação lisboeta. Não há rapazes maus.