A Praça do Império

A notícia da eliminação dos brasões das antigas colónias portuguesas nos relvados da Praça do Império, em Belém, levantou ondas de indignação. E também registou apoios. Assim sucede sempre, quando estão em causa paixões ideológicas.

É verdade que aqueles brasões estavam abandonados. Elaborados com plantas de várias cores, constituíam uma autêntica filigrana e necessitavam de uma manutenção constante – que a Câmara deixou de fazer há anos. 

Lembro-me de ter passado por ali há algum tempo e de ter visto o lamentável abandono a que estavam votados. Fotografei-os, com o objectivo de publicar a foto, mas o seu estado era de tal forma deplorável que não se via nada.

Nem sequer se percebia o que estava nas fotos.  

O certo é que ninguém se preocupou com o abandono dos brasões – mas agora muitos vêm reclamar contra o seu desaparecimento. É uma situação típica. Mas até certo ponto compreensível. Enquanto o abandono era apenas um sinal de desleixo, a intenção de os retirar tem um evidente significado político.

Conheço muito bem aquela praça, pois ia para lá brincar em pequeno. Tem uma fonte central com jactos de água, que alimenta um grande lago de forma circular, e relvados e lagos laterais, mais pequenos, onde eu tentava pôr a navegar barcos de vários tipos que nunca se aguentavam direitos na água. Fossem à vela ou de corda, tombavam para o lado, metiam água e afundavam-se. Invariavelmente. Cheguei a ir com um pequeno barco à vela a uma oficina de ferreiro para me meterem chumbo na quilha, de modo a evitar que adornasse. Mesmo assim não funcionou.

Essas idas à Praça do Império, em geral com a minha mãe (mas também episodicamente com o meu pai ou com uma empregada lá de casa), na mira de conseguir um dia pôr um barquito a navegar a sério, tinham lugar à noite, a seguir ao jantar. Uma vez, no entusiasmo de me esticar para empurrar o barco, inclinei demais o corpo e caí no lago – ficando completamente encharcado. A minha mãe entrou em pânico, dizendo que eu podia ter uma congestão, além de correr o risco de apanhar uma pneumonia – e lá fomos em passo acelerado Calçada do Galvão acima, onde morávamos.

Chegados a casa, depois de eu despir a roupa molhada, a minha mãe esfregou-me o corpo com álcool para provocar uma reacção de calor.

Tenho assim, desde pequeno, uma relação especial com o jardim da Praça do Império. Mais tarde, quando me interessei pela História, verifiquei como aquilo nasceu. Em 1940, aquando da Exposição do Mundo Português, toda aquela zona foi profundamente remodelada. A praça, com o respectivo jardim, construída de raiz, tornou-se o centro físico e simbólico da exposição, servindo de grande hall ao Mosteiro dos Jerónimos e tomando então o nome de Praça do Império – daí a presença dos brasões das diversas parcelas do então Império Colonial Português.

A decisão de os eliminar foi, segundo se soube, tomada a título pessoal pelo vereador Sá Fernandes, um homem que tem um historial polémico. 

Antes de ser vereador da Câmara de Lisboa foi o responsável pela suspensão do Túnel do Marquês, cujas obras estiveram paradas durante infindáveis meses, com terríveis prejuízos para os automobilistas e para os utentes dos transportes públicos, que perdiam ali tempos sem fim todas as manhãs, sem falar dos comerciantes da zona, que sofreram danos irreparáveis. E ninguém foi responsabilizado por isso. Pelo contrário: esse gesto 'patriótico' levou Sá Fernandes precisamente ao actual lugar de vereador, numa lista do BE. Mais tarde, romperia com o BE para poder ficar na Câmara, entrando na lista do PS. 

Não sei se o homem é bom ou mau vereador. Mas nesta história da Praça do Império, a justificação que deu para eliminar os brasões foi ridícula: seriam símbolos indesejáveis do império colonial. Mas o império não existiu? Faz algum sentido apagar os símbolos e os sinais da História? 

A mudança de nome da Ponte Salazar para Ponte 25 de Abril, com o mesmo argumento, foi uma autêntica anedota – pois a ponte foi construída muito antes da revolução, não tendo nada que ver com ela. Ao menos chamassem-lhe Ponte de Alcântara ou Ponte de Almada. E o mesmo se passa com a substituição de nomes de ruas e de praças das nossas cidades e vilas. 

Sou contra essas mudanças. A História é uma sucessão de factos que se vão acumulando – e não uma sequência em que uns acontecimentos vão engolindo e substituindo outros. Os factos históricos não se anulam uns aos outros – somam-se. 

A História de um país constrói-se no presente mas faz-se do passado. Na eliminação dos brasões há uma acção de apagamento de vestígios do passado com uma assumida intenção política. Admito que, em circunstâncias extremas, um povo se envergonhe da sua História. É normal que os alemães sintam vergonha do Holocausto, ou os russos das malfeitorias de Estaline, ou os chineses das mortandades decididas por Mao. Mas mesmo aí não se deve esconder o passado. Os países devem assumir a sua História, com as suas luzes e sombras, as suas contradições e momentos de glória. 

No fim da vida, o meu pai confidenciou-me que tinha o projecto de reescrever alguns dos seus livros, pois já não concordava com nada do que lá estava. Discordei veementemente dessa ideia e demovi-o de a pôr em prática. Disse-lhe mais ou menos isto: "Pai, tu tanto és a pessoa que és hoje como a que foste ontem. O homem de setenta anos não vale necessariamente mais do que o de trinta. Tanto valem os livros que escreveres amanhã como os que fizeste ontem. Por que haverão uns de substituir os outros? Todos são teus. Tu és o conjunto de todos eles. Cada um representa uma época da tua vida e as reflexões que então fizeste. Não tens de renegar nada".

Do mesmo modo, um país não tem de renegar nada, não tem de esconder nada, não tem de apagar nada da História. 
Fomos colonialistas quando outras potências também o eram. Fizemos coisas más e coisas boas, coisas certas e coisas erradas, como outros fizeram. E a prova de que não fizemos tudo mal é que continuamos a ser aceites nas terras que colonizámos. De que temos de nos envergonhar?  

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