O que sei do amor, da felicidade e do abandono

Na minha vida aconteceu nos últimos dias o que não me canso de dizer: a realidade tem muito mais imaginação do que qualquer escritor por mais fantasioso que seja nas suas ficções. Não há volta a dar. Contra tudo o que fui jurando regressei ao jornalismo e logo a um projecto diário, o i. Mas…

Um bom pretexto para falar de amor e felicidade, talvez por agora ter menos oportunidades para o poder fazer – por entre partidos em convulsão, ameaças de guerra, corrupções e golpadas, é o que me apetece. Um pouco como o regressar a casa e deitar-me numa cama lavada… O esticar das pernas para margens de lençóis normalmente inabitáveis, a extraordinária sensação de segurança, adormecimento, volúpia. Muito falamos de amor e paixão, porém quase nunca gastamos verbos e adjectivos no tanto que ganhamos quando nos espera uma cama por estrear, fresca mas quente, ansiosa de amor e paixão mas igualmente feliz se nela se deitar apenas um. 

Não se compara com a sensação de nos deitarmos, numa casa que não a nossa e sermos obrigados a fazer amor, ou sexo, num quarto com fotografias de família… só é natural para voyeurs ou para quem olha para as imagens sem nunca as ver. Não é que haja vergonha no que é belo ou humano, simplesmente estar com outra pessoa e navegar com ela sempre para longe das margens, para fora de pé, exige mais de intimidade do que de partilha. Quando vejo fotografias, de pais e filhos no quarto de amigos, pergunto-lhes se querem beber café e se não me querem contar nada. 

Também pergunto se está tudo bem quando As 50 Sombras de Grey estão à vista. Bem, não sou preconceituoso. O sucesso dos livros eróticos nada diz sobre a falta de cultura literária de uma sociedade, diz apenas do esvaziamento erótico das relações. Muitos do que lêem das aventuras de Grey e seus familiares são capazes de ter, lado a lado na cabeceira, o último romance de Mc'Ewan ou as teses político filosóficas de Innerarity. A questão não é literária, mas de fome de sonho e de sedução. Ter como garantida uma relação é a chave do sucesso destas pequenas 'sombras' literárias. É uma infidelidade consentida, uma relação secreta e poderosa. Porque vem de dentro. 

Falta-nos falar destas coisas com normalidade. Mas não falar muito, melhor escrever. Porque falar de sexo fora da cama é quase tão bizarro como ver teatro na televisão ou renegar uma cerveja gelada num pico de Verão. Admiro quem o faz, gosto de ouvir as especulações em torno da importância dos preliminares, dos truques da libido ou da decisiva 'oralidade' como via para uma vida plena. Mas escutar tantas palavras, tanta teoria, dá para desconfiar de que, sem roupas, continuarão a estar tão vestidos como antes. 

Outro lugar comum, dito com absoluta certeza, é que não existe relação íntima sem intimidade, o que não é verdade. Pode acontecer. Podemos fazer amor com uma pessoa de quem somos íntimos e com alguém de que pouco ou nada conhecemos. Na cama é melhor que exista intimidade, também oiço dizer. Nuns casos, sim. Noutros, não. Porque uma relação íntima, com intimidade ou sem ela, só resulta quando, uns e outros, têm a sabedoria de fazer amor sem a rotina de um burocrata. Fazer amor de cor vale o mesmo que o trabalho feito por um operário especializado na mesma tarefa. Precisamos à mesma, mas nunca saberemos o que andámos a perder. 

É por isso que nos entregamos aos e às amantes, jurarão alguns a esta altura. Pois, talvez. Mas ter amantes é para muitos um vício. Em casa deixaram de se olhar da mesma maneira e a cama, antes amor, é agora cansaço – eles e elas procuram então o que têm em falta e regressam ao campo de batalha onde parecem ter deixado a sua juventude. Passam a ter as duas coisas: estabilidade de sofá e rotinas em casa, paixão e ilusões fora dela. Mas rapidamente a circunstância exige algo em troca, os papéis baralham-se. O que era paixão passa a rotina e o sofá transforma-se em insuportável culpa. É uma espiral, uma droga que devora o que de bom temos. 

O grau mais baixo numa relação que se julgou de amor, não é o instante em que as pessoas se começam a ferir. Porque as mágoas podem ser um ponto de partida para recomeçar. O mais fundo entre duas pessoas que partilharam cama e sonhos é o momento em que o outro já nem sequer nos consegue ferir. O momento em que olhamos através dele, como se não existisse. 

Acredito no amor. Mais do que na felicidade. Porque o primeiro não é um estado absoluto. Porque se o fosse tantos de nós não o perseguíamos como se fosse atingível. Nele existem várias camadas, talvez na última esteja a utopia de uma fusão entre duas pessoas que, não perdendo nada do que são sozinhas, morrerão sendo a soma de uma com a outra. Pode amar-se alguém à primeira vista, claro. Mas aí, nesse lugar primeiro, nessa camada inicial de um caminho por ser feito, amamos o que projectamos no outro e não o outro – amamos em primeiro lugar o que imaginamos poder ser de nós na outra pessoa.