Estado Islâmico: A anatomia do terror

Apesar de terem lutado ao lado de outros grupos rebeldes contra o exército sírio, os combatentes do Estado Islâmico (EI) foram expulsos de Alepo, no norte da Síria, no passado mês de Janeiro. O motivo: as restantes milícias anti-Bashar al-Assad constataram que o EI estava mais interessado em formar um Califado sob lei islâmica do…

Estado Islâmico: A anatomia do terror

Porém, em oito meses, o EI suplantaria a Al-Qaeda para se tornar no mais temido grupo terrorista do mundo. Como? Através de uma marcha violenta ao longo dos caudais dos rios Tigre e Eufrates, um banho de sangue no berço da civilização. Poucas semanas após o exílio de Alepo, os homens do EI tomaram a cidade síria de Maskana e penduraram a sua bandeira negra no topo dos edifícios governamentais. Ao mesmo tempo, anunciavam na rede social Twitter a transmissão ao vivo da amputação de uma mão de um habitante desta localidade. Os radicais davam a conhecer uma das suas facetas mais particulares – a disseminação do terror nas redes sociais -, que viria a correr mundo com o degolamento de James Foley. Uns dias depois, na consequência da tomada de Raqqa (ainda hoje, a capital do EI) instauraram as suas primeiras leis fiéis à sharia (Lei Islâmica): proibição do tabaco e da música e obrigatoriedade de encerramento de lojas às horas de reza e de as mulheres andarem de face coberta. “Quem desrespeitar estas ordens será executado em praça pública”, anunciaram. 

O Estado Islâmico luta agora contra os curdos a norte do Iraque, já conquistou Mossul, a segunda maior cidade iraquiana, e ameaça o poder do governo xiita em Bagdade. O Presidente dos EUA, Barack Obama, já prometeu destruir a nova ameaça. A própria Al-Qaeda, que se demarcara do EI por considerá-los “demasiado sanguinários”, vê-se agora desapropriada de um regime de terror patenteado pelos seus líderes no Afeganistão. Afinal, o que é o EI e porque preocupa tanto as grandes potências?

O Líder

Há apenas duas fotografias e um vídeo conhecidos do líder do Estado Islâmico: Abu Bakr al-Baghdadi. Isso diz muito da sua aversão a aparições públicas e, principalmente, do seu extremado zelo contra traições e denúncias, que faz com que esconda a face com um véu diante de alguns colaboradores. Al-Baghdadi é conhecido por aniquilar implacavelmente traidores e delatores. Terá sido assim, alegadamente, que cimentou o seu poder na célula terrorista.

Ibrahim ibn Awwad ibn Ibrahim ibn Ali ibn Muhammad al-Badri al-Samarrai nasceu em Samarra, no Iraque, em 1971, numa família extremamente religiosa e erudita, que conta com imãs, professores de árabe, lógica e retórica. Al-Baghdadi seguiu-lhes as pisadas e tirou um doutoramento em Estudos Islâmicos na Universidade Islâmica de Bagdade. Tornou-se rapidamente numa sumidade religiosa local e, durante alguns anos, dirigiu-se aos crentes na mesquita Imam Ahmed ibn Hanbal, em Samarra. Ao contrário de Ossama bin Laden, filho de um empresário da construção que se tornou milionário, ou de Mullah Omar, o aldeão sem linhagem que se tornou chefe dos talibãs, al-Baghdadi nasceu e cresceu debaixo do manto do Islão. Assim, como muitos outros muçulmanos, viajou no final dos anos 90 para o Afeganistão para se juntar à jihad (guerra santa). 

No Afeganistão, Al-Baghdadi combateu por Omar e Bin Laden, mas foi outro terrorista que mais o influenciou e iria mudar a sua vida: Abu Musab Al-Zarqawi. O jordano, responsável por atentados bombistas em hóteis de Amã e, posteriormente, por formar a Al-Qaeda no Iraque (AQI), liderava um grupo de combatentes e integrou o iraquiano nas fileiras que operavam em Kabul e Herat. Zarqawi e Baghdadi passaram a trabalhar e a viver juntos, subindo na hierarquia talibã, ao ponto do jordano merecer toda a confiança de Bin Laden e do iraquiano passar a ser conselheiro do ministro da Educação (que terminara com o ensino para raparigas e mulheres). Ambos desenvolveram ali o seu radicalismo sunita e o seu ódio a iranianos, xiitas e ocidentais. 

Quando, em consequência do atentado de 11 de Setembro, os EUA atacaram os talibãs no Afeganistão, Zarqawi e Baghdadi fugiram para o Iraque e, em 2003, formaram a AQI, o braço da Al-Qaeda no Iraque, para combater as tropas americanas. Baghdadi ocupou sempre cargos de chefia na AQI, primeiro sob égide do amigo jordano e, após a sua morte em 2006 em consequência de um ataque americano, sob a liderança de Abu Omar al-Baghdadi, morto em 2010. Pelo meio, esteve preso durante dez meses, em 2004, no Camp Bucca, de onde seria libertado incondicionalmente por despacho norte-americano. Outras fontes clamam que o líder do EI esteve detido de 2005 a 2009. 

Assim que tomou as rédeas do grupo, Al-Baghdadi mudou-lhe o nome para Estado Islâmico do Iraque (EII) e voltou a conferir-lhe o carácter destrutivo dos tempos de Zarqawi. De 2010 a 2013, os homens de Baghdadi perpetraram dezenas de atentados.

Após a morte de Bin Laden no Paquistão, em 2011, o egípcio Ayman al-Zawahiri tornou-se emir da Al-Qaeda. Mas o novo líder da organização terrorista global não gosta de Baghdadi, não só de agora, mas dos tempos em que eram camaradas no Afeganistão. Relatórios das forças especiais afegãs dizem que Zawahiri terá aconselhado Bin Laden a não apoiar Zarqawi, Baghdadi e seus pares, por considerá-los “demasiado sectários e sanguinários”. 

O egípcio tinha razão. Com o evoluir da guerra na Síria, Baghdadi e a sua legião de seguidores viram na anarquia do país vizinho a melhor condição para alastrar as suas fronteiras. Na Síria, país natal da sua esposa, a activista islamita Saja al-Duleimi, Baghdadi iria romper a sua ligação com a Al-Qaeda, impôr-se sobre Zawahiri, amputar, decapitar e torturar inimigos, anunciar a fundação de um Estado Islâmico e autoproclamar-se Califa de todos os muçulmanos, alegando ainda ser descendente do profeta Maomé. Terá sido visto em público pela última vez no passado dia 5 de Julho, durante um discurso numa mesquita em Mossul. 

A Origem

No início de 2013, a Al-Qaeda já tinha um franchise na Síria – a Jabhat al-Nusra -, um grupo comandado por Abu Mohammad al-Jawlani que tinha saído da Al-Qaeda iraquiana. A Frente Nusra tinha-se tornado na principal oposição ao regime, destronando o precário Exército da Síria Livre, formado por desertores do exército sírio e por rebeldes laicos e/ou moderados. 

Quando Baghdadi chegou ao norte da Síria mudou o nome da sua filial para Estado Islâmico do Iraque e do Levante (EIIL) e quis anexar os combatentes da Nusra, debaixo da protecção global da Al-Qaeda. Porém, estes não gostaram da ideia e pediram a opinião do emir Al-Zawahiri. O egípcio, saturado de tanta insubordinação, decidiu que seria a Frente Nusra e não o EIIL o representante da Al-Qaeda na Síria e confinou Baghdadi a actuar apenas no Iraque. Este não se conformou: travou violentas batalhas contra a Nusra em cidades como Raqqa e Deir al-Zor, conquistando posições importantes e resgatando aos adversários 80% dos seus guerrilheiros estrangeiros. 

Desde então, Baghdadi não tem parado de expandir a sua influência. Iniciou um movimento de conquista do Norte para o Este da Síria, dispersando as suas forças pelo deserto, apoderando-se de barragens, estradas e refinarias e tomando o controlo de cidades fulcrais nas fronteiras com a Turquia e o Iraque. Na antiga Mesopotâmia, fez acordos com chefes tribais e recebeu o apoio de grande parte do povo sunita, desprezado pelo governo xiita de Al-Maliki. 

Em Junho de 2014, já com posições firmes no Este da Síria e no Norte e Oeste do Iraque, Baghdadi alterou o nome do seu movimento para Estado Islâmico, anunciando a expansão do seu Califado para a Europa e convidando todos os muçulmanos a emigrarem para a Síria e para o Iraque.

Financiamento

Segundo fontes da região de Idleb, no Norte da Síria, com quem o SOL falou, “o EIIL era quem pagava mais, tinha mais armas e melhores condições para os combatentes”. Nessa fase prematura da sua existência, as doações privadas de nações do Golfo, especialmente do Qatar, e da Arábia Saudita, foram as principais fontes de rendimento do EI. Os mecenas são empresários ou eclesiásticos abastados que pretendem fortalecer os grupos sunitas na guerra síria, de forma a derrubar o regime alauíta (xiita) de Assad e destruir o eixo de poder xiita do Irão até ao Líbano.
Contudo, Baghdadi sabia pela experiência no Afeganistão que, se o EI tinha ambições de se tornar num Estado, teria que ser auto-suficiente. Hoje, calcula-se que o Califado tenha cerca de 1,5 mil milhões de euros em dinheiro e activos, o que o torna na milícia mais rica do mundo. A principal fonte de rendimento são os poços de petróleo e as explorações de gás conquistados na Síria e, principalmente, no Iraque. O EI controla cerca de 80 poços de petróleo mas o exército iraquiano diz que a grande maioria estão selados e não produzem. Há, no entanto, quatro explorações que estão a funcionar porque os extremistas convenceram os trabalhadores a permanecer nos postos. 

Estima-se que o grupo venda cerca de 9.000 barris de crude por dia, a uma média de 24 euros por unidade (216 mil euros por dia). Somam-se ainda os rendimentos através do contrabando de gasolina refinada na Síria e vendida para a Turquia, o Irão ou o Curdistão iraquiano, que tem sido desmantelado pelas forças curdas e americanas. Há ainda o dinheiro obtido através de portagens, extorsões, impostos a não-muçulmanos e pagamentos de resgates. Os cofres do EI ter-se-ão enchido com o saque aos bancos de Mossul, aquando da conquista da cidade. Alguns relatórios mencionaram um desfalque de 420 milhões de euros, mas essa cifra pode ser exagerada. 

Recrutamento

Algumas notícias de 2013 referem que a força do EIIL aquando da sua entrada na guerra síria era de 3 a 5 mil combatentes. Hoje, estima-se que sejam 50 mil. O engenho de convencer militantes esteve na base do crescimento supersónico dos jihadistas. 

Foi na Síria que o EI aumentou o seu contingente. O seu poder económico e várias vitórias no confronto com o regime, levaram muitos combatentes a jurar fidelidade a Al-Baghdadi. À medida que ia conquistando mais territórios, o EI recrutava mais jovens, quer pela intimidação, quer pelas promessas de uma vida melhor e concordante com a lei corânica, uma vez que o Califado, a união de todos os islâmicos num Estado religioso, é uma das maiores ambições de qualquer devoto. 

Mas a maior novidade na filiação ao EI é a presença de muitos combatentes estrangeiros: 12 mil, segundo o Centro para o Estudo da Radicalização, sedeado em Londres. Desses, dez já foram identificados pela secreta portuguesa. Uma gota de água num oceano constituído por cidadãos oriundos de 81 países: entre eles, 3.000 tunisinos, 2.500 sauditas, 1.500 marroquinos e cerca de 3.000 oriundos de países ocidentais. Outro relatório do regime sírio aponta para números mais elevados: 54 mil jihadistas de 87 países diferentes, dos quais 14 mil são chechenos. A todos estes juntaram-se os habitantes das povoações sunitas conquistadas na Síria e no Iraque, ignorados e discriminados pelos governos de Assad e de Maliki, que viram no EI a melhor hipótese de vingança. 

Talvez nenhuma outra facção radical na história tenha usado tanto e tão bem as novas tecnologias e as redes sociais. O EI desenvolveu vídeos de recrutamento, aplicações para telemóvel e está presente em força em todas as redes sociais. Qualquer batalha, vitória ou declaração pública é emitida no Youtube. Existe um porta-voz e um assessor de imprensa. Recentemente, muitas jovens ocidentais e descendentes de famílias árabes a viver no Ocidente viajaram para o Médio Oriente para casarem com jihadistas, depois de seduzidas pelo Facebook e traficadas para a Síria através de uma rede a operar na Turquia. O Facebook, a par das armas deixadas no Iraque depois da guerra contra Saddam Hussein, foi a maior oferta dos americanos à jihad. 

Ideologia e objectivo

“Juntei-me ao EI para matar os infiéis e os apóstatas e ajudar a formar o novo Califado. Para isso jurei fidelidade ao Príncipe dos Fiéis, o Califa Al-Baghdadi”, afirma um adolescente, no documentário recentemente realizado pela Vice News. O discurso, que parece saído da Idade Média, reflecte a ideologia do EI e é transversal a todos os seus membros. 

O EI pretende criar um só Estado sem fronteiras para todos os islâmicos, a começar pela Síria e pelo Iraque, governado de acordo com a sharia (regime em que o Corão é lei única). Segundo a organização, todos os actos cometidos com esse fim têm a benção de Alá: daí a perseguição e massacre de minorias étnicas e religiosas, a destruição de mesquitas e santuários xiitas e as declarações de guerra santa ao Ocidente.  Abu Bakr Al-Baghdadi prometeu que o seu Califado irá marchar sobre Roma e Espanha, recuperando os territórios que já foram islâmicos. Outros jihadistas vão mais longe: sonham içar a bandeira de Alá na Casa Branca, em Washington. 

Para fazer com que a sharia seja respeitada, o EI forma patrulhas nas cidades conquistadas para avisar ou punir quem não respeite os dogmas corânicos. Tal como os talibãs, proíbem qualquer forma de música ou desporto, o emprego e o ensino para raparigas e mulheres, a presença de mulheres em espaços públicos sem a utilização de niqab (véu que só deixa os olhos expostos), o consumo de álcool, tabaco e drogas, a ausência de fé ou a manifestação de outro tipo de fé que não a islâmica. Os crimes são julgados em tribunal religioso, por um especialista em sharia. Contemplam-se penas de tortura e de execução, algumas delas por enforcamento ou crucificação em praça pública. 

Segundo a BBC, o Califado estende-se agora numa área abrangendo oito milhões de pessoas, sendo que a larga maioria são muçulmanos moderados que vivem em sharia contrariados.

As decapitações

Muitos defendem que o fetiche do EI pelas decapitações, manifestado globalmente nas execuções de Foley e de Sotloff, vem de interpretações literais do Corão. No capítulo que evoca a Batalha de Badr, lê-se no livro sagrado a palavra de Alá aos anjos: “Eu estou convosco: dêem firmeza aos crentes; Eu devo encher de medo os corações dos infiéis – golpeiem os seus pescoços e todos os seus dedos”. Noutro verso referente à guerra, lê-se também: “Quando encontrarem os infiéis na batalha, ataquem-lhes no pescoço, e uma vez derrotados, detenham firmemente os prisioneiros”. 

Contudo, especialistas em política internacional no Médio Oriente como Shashank Joshi, da Royal United Services Institute, acreditam que os versículos são usados propositadamente pelos líderes radicais para a sua estratégia terrorista. “Primeiro, é uma arma psicológica, porque mesmo em minoria, como em Mossul, o EI sabe que o adversário teme as suas acções bárbaras. Quem é o soldado mal pago que quer arriscar ser empalado ou decapitado?”, comenta Joshi. “Depois, serve para legitimar as ameaças lançadas aos EUA, que são geralmente desajustadas à sua capacidade bélica. Por fim, é um acto de propaganda, pois a violência visual da decapitação de um inocente causa mais impacto que a detonação de uma bomba”.

Foley e Sotloff foram apenas dois dos mais de 80 jornalistas e activistas dos media assassinados às mãos do EI. A Rede Síria pelos Direitos Humanos acusa a morte de 338 profissionais da comunicação no conflito, quase todos eles, por serem locais, desconhecidos no Ocidente. 

A juntar a estas decapitações, os homens de Baghdadi são responsáveis por amputações, crucificações, execuções sumárias, assassinatos colectivos e tentativa de genocídio de cristãos e yazidis. 

O mundo está perante uma segunda geração de radicais islâmicos, mais determinada, bárbara e sanguinária. Al-Baghdadi experimentou e verificou o que correu mal no regime talibã, em que Mullah Omar também se autoproclamou Califa, e na rede dispersa da Al-Qaeda. Vai decerto querer chegar mais longe.