No pântano do amadorismo

António Guterres demitiu-se em 2001 da chefia do Governo depois da derrota socialista nas eleições autárquicas, que afastaram o PS da presidência das câmaras de Lisboa e Porto. Foi uma decisão muito criticada na altura mas que Guterres justificou com um argumento principal: evitar que o país caísse num “pântano democrático”.

Treze anos depois, porém, o pântano de Guterres parece de uma gravidade quase insignificante quando deparamos com um grande “pântano democrático” que alastra sob os pés do Governo e do principal partido da Oposição (ou dos que se limitam à solidão estéril do protesto), sem que a ameaça de afogamento pareça perturbar seja quem for.

O afunilamento ou a ausência de verdadeiras alternativas políticas – com a crise de liderança do PS em pano de fundo – tende a tornar 'normal' ou mesmo incontornável a actual linha governativa, apesar das novas divergências fiscais no seio da maioria e do amadorismo político que é, cada vez mais, a marca do Executivo de Passos Coelho.

Três exemplos mais graves vieram ilustrar esse amadorismo insustentável que apenas o bloqueio democrático em que vivemos impede de se tornar imediatamente explosivo, embora os seus efeitos se anunciem devastadores: os últimos episódios da novela BES/ /Novo Banco/Banco de Portugal (BdP), além da abertura caótica do novo ano lectivo e do novo ano judicial, com o colapso do sistema informático da Justiça.

Vítor Bento e a sua equipa de administração do Novo Banco (NB) demitiram-se porque a 'guia de marcha' que lhes fora atribuída pelo BdP se alterou com a pressa de venda do rebento 'bom' – mas afinal nado-morto – do BES. Bento considerara há dois meses a sua nomeação para o ainda BES um encargo “quase patriótico”. Mas, pelos vistos, esse quase patriotismo não terá sido suficiente para encaixar a 'alteração das circunstâncias' em que fora nomeado.

O amadorismo ingénuo de Bento e da sua equipa – porventura deslumbrados com a missão de salvadores de uma mítica marca bancária – teve como contraponto outros amadorismos bem mais graves e cínicos que mostraram até que ponto todo este processo foi comandado politicamente pelo Governo, através da ministra das Finanças, e executado de forma desastrada pelo BdP. Não por acaso, nas vésperas da demissão da equipa do NB, assistiu-se a uma dança de cadeiras na administração do BdP, aproveitada para sancionar o vice-governador, Pedro Duarte Neves, encarregado do pelouro da supervisão, que já estivera à frente dos casos BPN e BPP – e, mais recentemente, do BES. Duarte Neves não terá dado conta de nenhum desses recados e foi por isso humilhado publicamente. Mas permaneceu – e aceitou permanecer – na administração do BdP, como convém aos costumes pátrios em matéria de dignidade e responsabilidade.

Que a supervisão do BdP falhou clamorosamente no acompanhamento do caso BES – como falhara antes com o BPN e o BPP – tornou-se um dado adquirido, como há já meses parecia óbvio. Mas a precipitação com que o Governo, também pressionado por Bruxelas, pretende vender o NB, favorecendo assim as condições de um péssimo negócio, é bem reveladora de uma manobra política que se desejou esconder embora o gato ficasse com o rabo de fora… Quem pagará, afinal, o prejuízo inevitável – que se procura toscamente escamotear – desse negócio senão o contribuinte, refém da onda de pânico político-financeiro que o caso BES provocou e ameaça ainda provocar até não se sabe quando, quanto e como?

Se o BdP e o Governo foram apanhados nas malhas do seu amadorismo de gestão reguladora e política do caso BES, como explicar que, pela enésima vez, as escolas não consigam reabrir com normalidade, supostamente por causa de um erro matemático de palmatória na colocação dos professores? Mas a arrogância inexpugnável do ministro da Educação, logo por ironia um matemático prestigiado, conheceu agora uma réplica inesperada – e igualmente catastrófica – envolvendo a sua colega da Justiça, cujo salutar ímpeto reformista foi arrasado pela sua displicência em prevenir as consequências práticas das mudanças não suficientemente pensadas e programadas no novo mapa judiciário e informatização dos tribunais.

Ora, para além dos seus resultados práticos imediatos e futuros, um dos efeitos mais funestos destes desastres de amadorismo irresponsável e auto-suficiência política é que, doravante, quaisquer tentativas racionais e necessárias de modernização dos sistemas educativo e judicial tenderão a ser olhadas com desconfiança ou hostilidade pelos cidadãos e sistematicamente bloqueadas pe- lo conservadorismo corporativo que caracteriza uma grande parte das organizações profissionais.

Por portas-travessas, o amadorismo político acaba por revelar-se, assim, o principal aliado de outros pântanos: o dos interesses instalados e o das mentalidades.