Kissinger e a ordem do mundo

Henry Kissinger foi um dos poucos académicos e pensadores que marcou e continua a marcar a política mundial. Teve poder, como conselheiro Nacional de Segurança e secretário de Estado dos EUA, entre 1968 e 1976; mas a influência das suas ideias e escritos começou muito antes e prolongou-se até hoje.

Um judeu alemão emigrado do III Reich, naturalizado americano, o soldado Kissinger foi 'descoberto' por um outro emigrado político germânico – Fritz Kraemer. Kraemer era um prussiano conservador, que se expatriara para os Estados Unidos em 1939 e se naturalizara americano.

Kraemer informou que “ele (Kissinger) ainda não sabe nada, mas já percebe tudo” e recomendou-o para a contra-inteligência militar. Mais tarde convenceu-o a ir para Harvard e doutorar-se.

A reflexão política e estratégica de Kissinger parte de uma atenta e 'germânica' leitura da História, como uma permanente e 'sísifica', procura da ordem 'internacional' ou 'interestatal'.

O tema está presente em toda a sua obra e é o centro do seu novo livro World Order, (Penguin Press, 2014). Depois de uma excursão pelas 'ordens' do passado, em que ressalva a importância de Vestfália e Viena como pontos de inflexão na libertação da política externa dos Estados das sequelas ideológicas, revê o século XX americano e avança pelo XXI.

Para Kissinger, a ordem deve reflectir as condições e equilíbrio para a paz e concerta-se entre as potências dominantes em cada tempo histórico. Na Europa até 1914 eram cinco – França, Grã-Bretanha, Prússia-Alemanha, Áustria e Rússia. A seguir a 1918 as guerras ideológicas do século XX, ditadas por credos políticos cosmocráticos – comunismo, fascismo, hitlerismo, democracia – puseram em causa esse equilíbrio.

Depois do fim da Guerra Fria, bem gerido por Reagan e George H. Bush, veio a presidência de Clinton, uma espécie de interregno optimista em que se pensou que a História tinha acabado e que daí para a frente tudo seria só e apenas a extensão à Humanidade do modelo vitorioso e das suas delícias – democracia, bem-estar, progresso e tempos livres.

As guerras dos Balcãs e do Ruanda podiam ter servido de aviso. Mas não. Foi preciso o 11 de Setembro para lembrar que a História continuava. Só que a reacção americana, militarmente correcta, acabou comprometida pela gestão ideológica que gerou 'o novo Médio Oriente'.

O descrédito dos inimigos 'neoconservadores' e 'liberais' pode servir para que as lições do velho realista recuperem algum sentido e guiem os 'perplexos' do século XXI. Só que, a fragmentação e a redistribuição de poder por rogue states e agentes não-estatais – como o Estado Islâmico – as paixões fanáticas das periferias, a desordem económico-financeira e a obsessão politicamente correcta dos europeus talvez não permitam tão cedo o equilíbrio de valores e interesses necessário para as ordens estáveis. Mas o nonagenário Kissinger não desiste de pregar inteligentemente, contra o pensamento único.