Gonçalo Tocha: ‘Podem gozar, mas o que estou a fazer é trabalho sério’

 

Tornou-se conhecido com os documentários Balaou e É na Terra Não É na Lua, distinguidos em festivais como o IndieLisboa, Locarno e DocLisboa, mas as primeiras experiências criativas aconteceram com a música, na adolescência, enquanto enfrentava uma depressão profunda. Reconciliado com o passado, Gonçalo Tocha lança agora Música Moderna, disco de estreia dos TOCHAPESTANA, duo de música popular de baile que de depressivo não tem nada. A apresentação ao vivo é sexta, dia 26, no Musicbox, em Lisboa, e, como acontece no disco, conta com a participação de Dina

Tocha é um nome artístico ou de família?

Fui eu que me baptizei de Tocha. Na altura dos 18 anos sofria muito de problemas de estômago e estava sempre em fogo, sempre mal. Mas não era só isso… Estive em depressão desde os 12/13 até aos 20 anos, uma depressão dura, em que não conseguia falar com as pessoas, nem olhar-lhes nos olhos. Quase não comia, tinha muita ansiedade, questionava o sentido da vida e estava sempre em fogo. O Tocha vem daí.

Treze anos não é cedo para ter problemas existenciais?

Na adolescência passa-se por depressões, costumam é terminar mais cedo…

Como foi diagnosticado? 

A minha mãe levou-me a um psicólogo, mas eu disse logo que não voltava. Não havia nada que ele pudesse fazer. Uma depressão é uma coisa tão íntima que as razões são impossíveis de explicar. Os meus irmãos não passaram por isto, não tinham esta inquietação. Se calhar também foi por isso que tive de passar por tudo sozinho.

Nunca conseguiu identificar a razão?

Fui tendo consciência de múltiplas razões, porque não há só uma. Quis passar por isto sozinho, porque sentia que tinha essa força.

De onde vinha essa força?

Sofria imenso porque não tinha grandes relações sociais, mas a música e a escrita foram-me agarrando. Saía da escola e fechava-me no quarto com a guitarra e ninguém me via até ao jantar. O meu pai também tinha uma grande biblioteca e discografia, com discos dos Sonic Youth, Pixies, Metallica, Slayer, e ouvia isso tudo. Tocava, escrevia e essas coisas foram-me salvando. 

Sonhava ser músico e escritor?

Queria muito ser músico, mas sempre achei que não ia ter hipóteses. A minha música estava muito marcada por esta depressão e pela minha incapacidade de tocar bem. Isso era fatal. E como era muito tímido os concertos eram terríveis.

Já dava concertos?

Sim, tive bandas desde os 14 anos, de pós-punk depressivo. Como cresci em Sacavém tocávamos em colectividades dos subúrbios, pavilhões desportivos com uma acústica péssima, participávamos em concursos de música moderna que havia por todo o lado. Era tudo miserável e aquilo só aumentava a minha depressão. Então percebi que se fosse pela música ia sofrer mais.

E a escrita?

A escrita era uma coisa mais de protesto. Publicar livros estava longe da minha cabeça porque a escrita é uma coisa de muito trabalho e progresso. Por acaso agora estou tramado porque encontrei caixotes e caixotes de escrita desde a adolescência na antiga casa da minha mãe. Nunca mais olhei para aquilo e até tenho medo de abrir.

Pode estar ali um esboço de um livro…

Algum dia tenho de olhar para aquilo, mas é muito cedo, tenho 35 anos. Tinha de me levar um bocadinho mais a sério para fazer isso. Alguém vai perder tempo a ler uma coisa que eu escrevi? Não estou pronto para isso. Libertei-me dessa tensão com o diário de bordo que fiz para o [filme] É na Terra Não É na Lua.

O É na Terra Não É na Lua surge na vida adulta. Como se libertou das angústias juvenis? 

Fui construindo o meu edifício. O suicídio passou-me pela cabeça, mas ao mesmo tempo tinha uma força que me agarrava. Imaginava o futuro e como seria quando aquilo passasse e encontrasse algo que me fizesse feliz. Essa esperança aguentava-me. 

Que vazio era esse para pensar em algo tão definitivo como o suicídio?

Não era um vazio niilista. Li Sartre, li todos os existencialistas e não me diziam muito, tirando o Camus, porque tinha essa coisa do futuro, de andar à procura de coisas que o satisfizessem. O niilismo puro não me agradava porque tinha muita coisa que queria concretizar, não sabia era como.

Quando soube?

Aos 26, 27 anos comecei a ganhar controlo sobre as coisas. Até aos 20 pensava que a vida era só sofrimento porque cresci em dor. Pensava que para criar tinha que sofrer sempre, intensamente, sem pausas.

Aos 19 entra para a Faculdade de Letras. A vida universitária ajudou?

Sim, quando entrei para a universidade fugi de Sacavém assim que pude – ainda hoje tenho dificuldade em lá ir – e é na universidade que as coisas começam a mudar.

Letras foi a escolha óbvia?

Não. No secundário, como estava completamente perdido, fui para Economia influenciado pelos meus pais. Por sorte não entrei na faculdade e passei um ano a trabalhar em fábricas e armazéns. Trolha aos 18 anos. Foi um ano terrível, mas um ano terrível da libertação.

Em que sentido?

Percebi aquilo de que tinha de fugir. Senti na pele a exploração humana, mas também percebi que não me podia queixar. Conheci gente que trabalhava há uma vida inteira em fábricas e eu ainda podia fugir dali. 

E vai para Língua e Cultura Portuguesa? 

Fui parar a Língua e Cultura Portuguesa (Língua Estrangeira) porque havia a pressão de que se não vais para a faculdade não vais ser nada na vida. Então fui para este curso porque queria emigrar e achei que o 'Língua Estrangeira' permitiria isso. Vim a descobrir mais tarde que era para dar aulas de Português a estrangeiros.

Mudar de curso não foi opção?

Ainda pensei candidatar-me à escola de cinema, mas depois pensei 'para quê? Vai dar tudo ao mesmo'. O sistema está feito para anestesiar as pessoas e os estudantes seguirem o curso sem pensarem muito nele. Senti que o papel da faculdade é preparar os jovens adultos para serem um animal que diz sim e que se adapta sem questionar. Então inventei escapatórias. Criei um cineclube e formei uma banda, os Lupanar, com colegas de faculdade: o Dídio Pestana e a Ana Bacalhau [Deolinda]. Isso passou a ser o meu curso.

Criou as próprias bóias de salvação?

Completamente. Se não tivesse sido assim, saía de lá traumatizado. A história da cultura portuguesa, a seguir às Descobertas, é analisada segundo os traumas. Formam-se pessoas segundo os parâmetros do destino, da fatalidade… Isso é muito forte e traumatizado já tinha estado. Por isso decidi fazer o meu caminho. 

Os Lupanar nunca vingaram. Porquê? 

No início fomos bem recebidos, mas o disco estava muito mal produzido, não soava bem e éramos muito diferentes. Fiquei desiludido porque estava a dar a minha vida para aquilo, mas não resultou. Na altura o meio também era diferente, quase ninguém cantava em português e lembro-me de ter discussões com outras bandas que só queriam cantar em inglês. 

Depois da música virou-se para o cinema e fez Balaou [2007]. 

Ainda fui para a Bélgica cinco meses dar aulas de português para crianças, mas voltei porque a minha mãe ficou doente. Entretanto a minha mãe morreu, deixou-me uma pequena herança e fiz o Balaou assim. O filme teve algum reconhecimento, ganhou o prémio de Melhor Longa-Metragem Portuguesa no IndieLisboa e foi comprado pela RTP 2 e Arte, o que me permitiu fazer o É na Terra Não É na Lua [2011].

Com este filme sobre o Corvo conheceu pela primeira vez o sucesso ao ganhar a menção especial em Locarno, ao vencer o DocLisboa e a acumular outras distinções em festivais pelo mundo. Foi uma vitória?

Foi o momento em que senti que o meu trabalho estava a ter uma visibilidade muito grande, mas como passei muito para chegar até ali, já estava vacinado com coisas que me podiam afectar. Trabalhei muito para que a visibilidade, e não o sucesso, que o filme teve acontecesse. O pior era se tivesse tido visibilidade sem o trabalho merecer. Esfolei-me para concretizar o filme, dei tudo o que tinha, fiquei sem dinheiro e, a partir daí, foi uma bênção o que aconteceu. 

A Mãe e o Mar, que estreou em sala este ano, não foi acarinhado da mesma forma.

Nisso foi uma desilusão. Acho que deveria ter tido outra atenção como filme português que vai para sala. Mas percebi que as coisas são muito voláteis e relativas ao momento em que acontecem. Faz-me pensar que se o É na Terra… tivesse acontecido noutro momento poderia não ter tido a mesma visibilidade. Aí Locarno fez toda a diferença. Quando estreou em Portugal, no DocLisboa, a imprensa já falava do filme e as sessões já estavam esgotadas. Houve um hype à volta daquilo que me passou por cima. Se não estivesse preparado com trabalho ia flipar. 'Ai, sou o maior. O céu abençoou-me'.

É essa segurança absoluta no trabalho que tem construído que lhe permite lançar agora Música Moderna, de TOCHAPESTANA? 

Sim, criei uma base que, se tiver visibilidade, consigo lidar com ela. Isso é fundamental para não entrar num delírio qualquer.

Mas TOCHAPESTANA – um duo que parece duas caricaturas e que mistura música de baile popular português com rock, techno e synthpop – é um projecto muito mais arriscado do que qualquer um dos seus filmes. 

Colocamo-nos a jeito, eu sei. Isto tem tudo para correr bem ou muito mal. Não há meio-termo. E sei que o preconceito vai jogar contra nós. Mas o que estamos a fazer é puro espectáculo. É performance. Música é criação, é rock and roll, é atitude… Não estou a fazer música para pensarem sobre os acordes ou sobre a letra que é tão bem escrita. Isto não é o Abrunhosa a fazer música pop e a dizer que é intelectual. Se quiserem podem não levar a sério, olhar só para o boneco, gozar, mas estou a fazer um trabalho sério. Podem não gostar, estou pronto para levar porrada, mas não nos podem atacar musicalmente porque o álbum está bem produzido, soa bem e tem força.

O duo é o Tocha e o Dídio Pestana, com quem já tinha os Lupanar. Como surgiu? 

Não é uma coisa que se planeia. Fomos experimentando coisas e, quando demos conta, estávamos a fazer isto, a brincar com um monte de referências. Queríamos que fosse um bailarico popular pimba, mas não conseguimos porque as nossas conexões não são essas. Por isso faço outra coisa inspirada nesse universo.

Mas é uma paródia, uma fantasia?

É a personificação de uma possibilidade de um duo pós-popular, com uma grande paixão pela música de baile, pelo rock, metal, techno…

Porquê o imaginário dos bailaricos pimba?

Os bailaricos estavam a ter muito sucesso em Portugal nos anos 80, inspirados na música popular portuguesa e aplicando teclados, o beat, por cima. Mas nos anos 90, com o Emanuel a tornar a música popular marota – que se usava na desgarrada do Minho – mais ousada, surge o termo pimba para denegrir. E aí apareceu a elite a separar as águas. Lembro-me de ouvir os Xutos&Pontapés na rádio dizerem que o que o Emanuel fazia era uma porcaria. Entendo, mas na realidade estão a proteger o mercado: isto é música, aquilo não é. No rock que eles fazem há boa e má música e no pimba também podes ter isso. Em TOCHAPESTANA não existem géneros, existe música vinda de um teclado e uma guitarra.

O vosso lema é 'o passado imita-nos'. Daí os pormenores como a luva à Michael Jackson ou Artur Semedo, a guitarra em V a lembrar a do Michael Schenker, dos Scorpions?

São referências de muitas coisas, mas que todas juntas ficam bem em TOCHAPESTANA. A guitarra em V leva-nos para o metal, o hardrock. O teclado para o synthpop dos anos 80. O passado imitou TOCHAPESTANA num futuro próximo. Podem-se rir, mas o que estou a fazer é a levar esta possibilidade até ao cosmo. É isso que me atrai, criar universos paralelos que perdurem.

É por isso que existem estes artifícios todos: o realizador, o músico de baile, o cantor romântico?

Não são artifícios, são possibilidades de mim próprio. Não invento coisas que me são exteriores. São personificações de várias coisas que faço. E levo isso o mais longe possível à procura da possibilidade. Quando estava naquela depressão profunda muita gente me dizia 'tens de encontrar a tua verdade'. Isso sempre me fez alguma alergia porque o que uma pessoa é, é algo que se vai descobrindo com o tempo e as situações. Como queria ser muitas coisas, o que faço é aniquilar a minha verdade enquanto pessoa unitária e levar ao máximo as potencialidades da possibilidade. O que poderia ser se escolhesse ser só uma coisa. 

Estas possibilidades nunca se juntam?

Não. Se estou a fazer um filme dificilmente trabalho num disco e vice-versa. Por isso é que estive sete anos a fazer cinema e não conseguíamos terminar o disco. Mas não quero chocar ou criar anticorpos. Estou a criar espectáculo e podem gozar com a minha cara ou dizer 'detesto este gajo'. Quer dizer que criei uma reacção, isso é bom. 

Há um ponto de contacto entre todas estas possibilidades: um lado popular muito grande. É o que lhe interessa na criação?

Quando trabalhas em Portugal o problema é fugir disso. Mas esse lado popular tem a ver com a minha não formação e a opção de não ser elitista. A cultura salvou-me. Foi a minha ferramenta para sobreviver no mundo, logo nunca poderia ser elitista. Se for elitista torna-se inútil. O popular tem isso, de abrir para os outros sem abdicar dos meus parâmetros de criatividade. É por isso que digo sempre que estou a fazer um filme agora, amanhã não sei.

Porquê?

O cinema pode ser das artes mais elitistas de todas. No cinema levam-se muito a sério e têm um ego descomunal porque fazer um filme é o trabalho que mais se assemelha a Deus enquanto criação de um mundo. No cinema crias um mundo que se torna eterno porque cristalizas pessoas, sítios. É isso que o cinema tem de fantástico, mas é preciso ter-se muito cuidado. Nenhum realizador é Deus e não é um criador único. A criação e a arte são coisas que estão conectadas com a vida. Há uns tempos li uma entrevista do Jorge Jesus ao SOL e ele, citando Lenine, dizia que 'a prática é o sentido da verdade'. Quando li isso fiquei… 'Salvé, Jesus' [levanta as mãos em referência]. Ele também foi treinador sem formação. E a prática, de facto, é a cena. A teoria é fantástica para criar bases, mas a vida é a prática, é na prática que se resolvem as coisas.

A arte salva, mas paga contas e alimenta uma família?

O cinema permitiu aguentar-me bem até agora. Neste momento só estou a gastar, a alimentar a música com o cinema. Se não tiver retorno dentro de seis meses estou tramado. Mas não vou desistir. Em vez de irmos tocar no palco principal de um festival, vamos tocar numa colectividade e viver disso. Acho que é uma bela maneira de viver. Mas penso sempre que não pode correr mal porque o mal já passou, ficou lá atrás, na adolescência. Vai correr mal no dia em que não me apetecer fazer nada, em que não tiver ideias. Como tenho cada vez mais ideias, não pode correr mal.  

alexandra.ho@sol.pt