Alpoim Calvão: ‘Marcello pediu para não deixarmos vestígios’

Em 2012 o SOL publicou uma entrevista com Alpoim Calvão, que no dia da sua morte republicamos no site do jornal. Nesta, o comandante fala da polémica acção militar levada a cabo em Conacri.

Foi o grande aventureiro português da segunda metade do século XX. Durante a guerra colonial ocupou Conacri para libertar prisioneiros e fez outros estragos pelo caminho. Afundou um barco no Porto de Lisboa e hoje divide o seu tempo entre a Guiné, onde tem uma fábrica, e a casa familiar de Cascais. A saída da sua biografia em livro está para breve

Comecemos pelo princípio da sua vida. Onde nasceu?

Nasci em Chaves, na Rua do Sol n.º 8. Ainda sei a casa onde nasci. Vivi o meu primeiro ano em Chaves. Depois segui com os meus pais para Lourenço Marques, em Moçambique, onde passei 15 anos seguidos. Sempre em contacto com pessoas de todas as cores e tonalidades.

África tornou-se a sua terra?

Habituei-me ao trato com a natureza e com a aventura. Vivi à frente do rio Incomati. Naquela encosta, até ao rio, havia muitos animais. A povoação, Vila Luísa, em Marracuene, ficava a 30 km de Lourenço Marques. Foi onde se deu uma das batalhas da pacificação de Moçambique em finais do século XIX. Havia lá um pequeno monumento a comemorar a batalha. Tive logo uma grande consciência da questão militar, e passei a estudar essa História. E percebi que nós, os portugueses, estávamos lá há mais tempo do que os chamados Vátuas do Gungunhana. Na realidade, eram o povo Angune, que tinha fugido do Shaka Zulu. Em 1821 atravessaram Moçambique até Angónia, depois voltaram para Gaza, e ficaram naqueles territórios portugueses.

O seu pai também teve uma vida de aventura?

O meu pai era civil, mas teve de facto uma vida de aventura. Aos 16 anos saiu de casa e foi para o Brasil. Esteve lá 12 anos. Depois voltou, achou isto pequeno, e resolveu ir para África. Casou em Chaves com a minha mãe, e partiu para Moçambique. Era o que se chamaria hoje um técnico de contas.

E a sua mãe?

A minha mãe era uma mulher bonita, alta, elegante, de porte senhoril. Guardo dos meus pais as melhores recordações. O meu avô paterno, em Chaves, era o que os ingleses chamam um gentleman farmer. Andava no campo, como na cidade, de fato e gravata. Era tão monárquico que se recusou a prestar juramento ao regime republicano, quando estava como tesoureiro na Câmara.

Voltemos a Moçambique.

Como vivia numa cidade à beira-mar, aprendi a nadar aos 5 anos. Sempre andei pela praia, e não desdenhava fazer gazeta à última aula do dia para ir para a praia. No liceu conheci muita gente interessante, e alguns foram líderes independentistas. Um dos meus grandes amigos, e colega de liceu, foi José Carlos de Oliveira Horta, conselheiro do MPLA. Conheci o Pascoal Mocumbi, ex-primeiro-ministro de Moçambique, que tinha sido comandante de falange da Mocidade Portuguesa. E também o Chissano.

A proximidade do mar teve influência na ida para a Marinha?

Comecei a velejar e a remar em Lourenço Marques, na Mocidade Portuguesa e no Clube Naval. Um dia, passou por lá um navio de guerra e houve um contacto com os cadetes que vinham em formação. A minha mãe, ao ver este interesse, perguntou-me se queria ir para a Marinha. Na minha família havia muitos militares, mas eram do Exército. Aos 16 anos, quando acabei o Liceu, vi-me incorporado nas Forças Armadas Portuguesas, na Escola do Exército. Na altura, os preparatórios eram comuns a todos os ramos das Forças Armadas – o que dava depois vantagens, porque nos conhecíamos todos. Outros oficiais que estiveram lá comigo foram o Almeida Bruno, o Jaime Neves, o Ramalho Eanes, o Garcia dos Santos, o Tomé Pinto. Fiquei amigo deles todos. Ainda hoje, uma vez por mês vamos à messe da Força Aérea, na Gago Coutinho.

Passou a viver separado da família?

A família continuou em Moçambique. O meu pai morreu lá. A Escola Preparatória do Exército era, e ainda é, na Amadora. Entrei logo no segundo ano depois de ela abrir. Foi em 1954, quando nevou em Lisboa e fazia um frio horrível. Às seis da manhã tínhamos de aparecer na formatura de barba feita. Mas adaptei-me bem. A disciplina nas Forças Armadas tem um sentido: visa a eficiência. Enfim, habituei-me rapidamente, apesar de no 1.º ano levar com 30 dias de prisão. Era quase sempre por sair à noite. Mas foi trágico: 30 dias de prisão era o máximo que se podia apanhar no Exército. Acho que sou normalmente disciplinado, mas quando não concordo com alguma coisa…

Na Escola Naval não teve os mesmos problemas?

A Escola Naval passou bem. Entrei como um dos últimos do curso, e acabei no primeiro terço. Subi um bocadinho. Tive professores notáveis, como o comandante Veiga de Oliveira, também catedrático na Faculdade de Ciências. Ou o almirante Rogério de Oliveira, doutorado em construção naval em Londres, com a melhor nota da época. O homem da balística era o comandante Conceição e Silva, muito ligado às matemáticas e um notabilíssimo astrónomo. O Pinheiro de Azevedo era instrutor de cálculos náuticos. Era gente de muita qualidade.

E como começou depois a carreira profissional?

Quando fui promovido a 2.º tenente, atiraram-me para a NATO. A Marinha estava essencialmente ligada à NATO, numa parte, e noutra ao Ultramar. Abria muitos horizontes, para quem estivesse interessado. Mas comecei na NATO, na parte operacional, a navegar, e aprendi logo as melhores práticas. Depois abriu um concurso para ir a Inglaterra tirar a especialização de mergulhador de combate, e eu fui. Um curso muito duro. Quando voltei, os mergulhadores estavam ligados à esquadrilha de submarinos – ainda hoje estão. Fiz então a especialização de submarinos.

Isso foi tudo antes da guerra?

A guerra começou depois. E eu pensei: quero participar. Era o corolário natural de uma carreira militar. Mas as especializações que eu tinha não davam para a nossa guerra. Abriram então um curso de fuzileiros, em Inglaterra. Fui oferecer-me para comandar um destacamento na Guiné. O comandante, depois almirante, Sequeira Araújo, não quis deixar-me sair dos submarinos, e deu uma má informação. Então, pedi uma audiência ao chefe do Estado Maior da Armada, almirante Roboredo e Silva. Ele tinha recriado os fuzileiros do antigo Terço naval, que era o corpo militar permanente mais antigo de Portugal. Expus-lhe o meu problema: queria ir para a guerra e comandar um destacamento de fuzileiros na Guiné. Concordou, e mandou-me para a Escola de Fuzileiros. Outro curso duro. E lá consegui ser nomeado em 1963 comandante do 8.º Destacamento de Fuzileiros Especiais, apontado para a Guiné.

Para si a guerra começou em 1963…

Desembarquei em 4 de Outubro de 1963 no Cais do Pidjiguiti, em Bissau – São José de Bissau era o nome completo da cidade. Lá voltei àqueles nasceres do sol de África, que eu conhecia tão bem. Para tomar contacto com o território, tinha de ser de avião, Numa operação caíram dois aviões. Tinham chocado, e o único sobrevivente foi feito prisioneiro pelo PAIGC. Era o António Lobato, na altura sargento-ajudante piloto aviador. Esteve sete anos e meio preso no PAIGC e na Guiné-Conacri. No 1º briefing a que assisti, perguntei quem o ia libertar. Silêncio. Ninguém ia buscar ninguém. Havia o Direito Internacional, nós não atravessávamos fronteiras, e eles atravessavam-nas à vontade, e até protegidos.

Foi nessa altura que decidiu fazer a invasão e ocupação de Conacri?

Naquela altura fiquei com a coisa atravessada na cabeça. Mas continuei com o meu trabalho normal. Participei na Operação Tridente, que foi a maior feita por nós naquele território. Repare que a Guiné eram 25 mil quilómetros quadrados com a maré cheia, e 30 mil com a maré vazia. As comunicações eram todas aquáticas, até porque não havia estradas. A Operação Tridente visava manter abertos os canais de navegação, para fornecer os quartéis. O PAIGC tinha capturado dois navios e era preciso evitar que isso voltasse a acontecer. A operação durou 70 dias, e mobilizou três destacamentos de fuzileiros, três companhias de cavalaria, um pelotão de artilharia e apoio aéreo. Foi feita uma base ligeira na praia, junto à água. Eram grandes extensões de arrozais. Ao fim de 70 dias, conseguimos limpar a zona.

Foi a sua primeira experiência da guerra a sério?

Foi, e foi uma grande escola. Estive num combate que durou três horas. Vi gente morrer. Mas a operação em si correu bem, apesar de alguns problemas, como um avião T-6 abatido. Nessa altura tive um primeiro contacto com o célebre guerrilheiro Nino Vieira, depois Presidente da Guiné. Tínhamos apanhado uma carta dele para os superiores, a queixar-se do acosso das tropas portuguesas. Estive lá cinco anos, em duas comissões. Na primeira comissão fiz operações em conjunto com o Tomé Pinto. Ele, em terra, fazia uma criação de gado, para termos carne. E eu caçava, para fornecer a criação. Às vezes, mandávamos uns balantas roubar uns animais. Tínhamos horta e tudo. Foi fundamental para alimentarmos bem os nossos homens. Fui promovido por distinção, e vim comandar a Escola de Fuzileiros, para transmitir a minha experiência e criar doutrina. Até fui visitar todos os teatros de guerra, para incorporar experiências diferentes.

Era só guerra, ou havia também negociações políticas?

Numa entrevista à Life, em 1963 ou 64, Salazar tinha chegado a admitir a independência. Benjamim Pinto Bull, grande amigo do Senghor [Presidente do Senegal entre 1960-80], veio a Portugal, a convite de Franco Nogueira, para falar com Salazar. Vinha cheio de medo da Pide, pelo que se dizia, e avisou um amigo do Le Monde. Salazar não gostou. Franco Nogueira foi buscá-lo ao aeroporto e levá-lo ao Hotel Eduardo VII. Mas teve de esperar três dias para ser recebido por Salazar, que acabou por o receber friamente. E Benjamim Pinto Bull lá lhe transmitiu a mensagem de Senghor. Salazar disse que ia pensar. Outros três dias depois, voltou a chamá-lo, para lhe dizer que aceitava africanizar as instituições da Guiné. O PAIGC temeu que a transição pacífica afectasse os seus interesses, Portugal foi expulso da OUA, e ficou tudo na mesma.

Ficou famoso pela sua participação nas Operações Nebulosas. Chamavam-se assim mesmo?

O nome oficial era mesmo Operações Nebulosas. Fiquei encarregado de averiguar um contacto, dentro de água, que acabara numa troca de tiros. Lá fui, com um ou dois botes de borracha, e meia dúzia de homens. Um dia, salvámos um pescador que estava aflito, e vimos que era da Guiné Conacri. Era na fronteira, e não tenho a certeza de que lado estaríamos. O homem ficou agradecido por o salvarmos, e como era dali, e assistia a tudo, deu-nos a informação de como se movimentavam na zona as forças do PAIGC, e das suas ligações à gente da Guiné-Conacri. Decidi montar uma emboscada, escondendo os nossos botes na vegetação de tarrafe, que era muito espessa. Era na época das chuvas, mais incómoda, mas dando mais segurança. Tínhamos um prisioneiro que falava sosso, e fazia de intérprete. E pusemo-nos à espera de um navio do PAIGC ou da Guiné-Conacri. Ao 5.º dia, finalmente ouvimos um barulho de motor. Dois dias depois, o mesmo ruído, em sentido contrário. A saída para a abordagem do navio inimigo foi um caos. Mas lá acabámos por o apanhar. Foi a primeira vez que me vi em combate corpo a corpo. Como tinha abandonado a minha espingarda para me içar para o navio adversário, acabei por ficar com uma Simonov russa, que ainda hoje tenho. Fizemos 26 presos e trouxe o Patrice Lumumba [o navio do PAIGC tinha o nome do líder nacionalista do Congo belga, assassinado em 1961], que se afundou pelo caminho.

E as consequências?

Uma bronca internacional tremenda. A ONU falou em acto de pirataria. Mas, para mim, naquela zona, a fronteira não existia. Às tantas o Spínola chamou-me, com a minha equipa, para fazermos outra operação do lado de lá da fronteira. Tinham sabido que um agente Marcel, do PAIGC, ia a Kadignan. Fui ao lado de lá. O navio em que Marcel vinha era o Bandim, que eles nos tinham roubado uns anos antes. Apanhámos o navio com uma bazucada em cheio, e entrámos com ele por Kadigné (do lado de Conacri) dentro, com o leme encravado, a deitar gasóleo por todos os lados. Eles deviam estar à espera, e alvejaram-nos. Mas lá voltámos.

Conseguiu eliminar oficialmente as fronteiras na Guerra da Guiné?

Oficialmente, não digo. Mas para mim nunca contaram. Agora os apoios às operações nunca foram oficiais, ou assumidos publicamente. Depois comecei a pensar nos prisioneiros portugueses em Conacri, que entretanto eram já mais de 20. Eles tinham lanchas ligeiras mais rápidas do que as nossas. Porque é que não íamos lá rebentar aquilo?

Avançou então para a tomada e ocupação de Conacri?

Fui falar com o comandante chefe interino, o comodoro Luciano Bastos (ainda vivo, com 97 anos), porque o general Spínola estava a águas no Luso. Mas o comodoro, concordando com a minha sugestão, mandou-me falar com o Spínola. Meti-me num avião e fui ao Luso. A minha ideia era rebentar com as lanchas e trazer os prisioneiros. Spínola concordou, mas pediu-me um plano. Comecei logo a preparar o plano. Havia um grupo de oposicionistas ao Sékou Touré [Presidente da Guiné-Conacri desde 1958 até à morte, em 1984] em contacto com o Governo português. Com o governador, foram ponderadas duas hipóteses: ou nos tornávamos um santuário para eles do nosso lado, ou tentávamos fazer com eles um golpe de Estado do lado de lá. Optámos pela segunda hipótese. A primeira coisa que fiz foi ir com um navio patrulha disfarçado – deve ter sido o primeiro navio-patrulha do PAIGC, porque levávamos as bandeiras deles pintadas – a Conacri, ver como era aquilo. Entrei no porto de Conacri de noite, pelo Sul. Vimos e anotámos as modificações à carta do Porto. Lá dentro do porto, ainda tivemos uma avaria no gerador. Tivemos ali uma hora de grande tensão, até estar tudo reparado, e podermos sair com todas as informações. Mas lá acabámos por voltar sem problemas. Como o MNE nunca aceitara gente da Pide nas embaixadas, não tínhamos informações secretas, e foi preciso montar ali um serviço de informações, com exilados. E ainda arranjei maneira de aproveitar o facto de dois grumetes portugueses desertarem para o lado da Guiné-Conacri. Finalmente repatriados, tive a ajuda de um deles.

Foi preparada essa deserção?

Enfim, desertaram. Depois fui buscar oposicionistas de Conacri à Gâmbia, à Serra Leoa e ao Senegal. Íamo-los embarcando de noite, e ainda reunimos uns 300. Fizemos um quartel numa ilha dos Bijagós, Soga. Eram normalmente ex-militares do exército francês, mas demos-lhes formação. Ninguém, depois de entrar, podia sair dali, até à operação. Ainda arranjei mais 200 homens, um destacamento de fuzileiros e uma companhia de comandos africanos. Quando partimos, no dia 20 de Novembro de 1970, tinha cerca de 500 homens comigo, que só a meio do caminho souberam que íamos para Conacri.

E todos aceitaram bem o objectivo?

A questão é que naquela altura já ninguém podia desistir. Estava tudo calculado para entrarmos – e entrámos – na noite de sábado para domingo, de 21 para 22 de Novembro, com lua cheia e maré alta, no porto de Conacri. Escolhemos uma noite de sábado, por ser quando havia menos vigilância. Mas antes da operação, ainda tive de ir pedir autorização ao professor Marcello Caetano, com uma carta de Spínola. Autorizou, mas pediu para não se deixarem vestígios. A primeira equipa saiu à uma da manhã, como previsto, e destruiu logo as oito lanchas rápidas torpedeiras. Mas, claro, foi preciso fazer algum espalhafato: grandes explosões, umas baixas no inimigo. Outra equipa foi a seguir apagar a luz da cidade. Estava tudo a correr na perfeição. Muita gente desembarcou no molhe do clube náutico a pé enxuto.

Correu tudo como previsto?

No PAIGC não estava Amílcar Cabral, nem quase ninguém. Aí fomos apanhados de surpresa. Mas os presos foram libertados: 26 homens, incluindo o tal piloto Lobato, que vinha magríssimo – foi preso com 80 kg e nessa altura pesava 47. No quartel da Guarda Republicana da Guiné-Conacri, a equipa, comandada pelo Marcelino da Mata, matou toda a gente. Morreram uns 400 soldados deles. Para espanto dos nossos, das prisões subterrâneas desse quartel saíram uns 500 presos políticos, incluindo alguns ex-ministros e um ex-ajudante de campo do Sékou Touré, preso há cinco anos. Ainda apanhámos o ministro da Defesa deles. A primeira coisa que correu mal foi a equipa enviada para tomar conta da rádio não conseguir lá entrar. Houve um medo, uma coisa estranha, muito africana, difícil de compreendermos. No aeroporto, também não estavam os seis ou sete Migs que eles tinham, e que queríamos também destruir. Estavam no interior. Ainda tive medo do que nos poderiam fazer com os aviões, mas depois o piloto Lobato disse-me que eles não conseguiam ainda manobrá-los. E, de facto, quando nos retirávamos, houve um Mig que nos sobrevoou muito alto, sem fazer mais nada. O Sékou Touré, avisado pelo seu chefe de Estado Maior, a quem de joelhos pediu que lhe poupasse a vida, refugiou-se em casa de uma amiga, e não foi possível encontrá-lo e detê-lo. Os africanos quiseram fazer um saque, mas ficaram-se pelas instalações da Banda Militar, e o que trouxeram foram instrumentos musicais!

Mas tinha Conacri dominada?

Quando nasceu o dia, a cidade estava dominada, e os nossos homens eram aclamados pela multidão como libertadores. A situação era esta: o PAIGC estava abalado, as Forças Armadas da Guiné-Conacri com muitas baixas e a Marinha inoperacional. Na conversa com o professor Marcello Caetano tinha ficado claro que a operação valeria a pena só para libertar os prisioneiros. Ora eu fiz muito mais. E portanto achei que devíamos vir-nos embora.

E lá teve mais outra reacção internacional sonora…

Claro, na ONU, um grande clamor internacional. Marcello Caetano não foi capaz de assumir as responsabilidades e de reconhecer a operação. Criou-se então um mau ambiente entre mim e o Governo.

No 25 de Abril estava com os spinolistas?

Não quis participar no 25 de Abril, por causa do Ultramar. Não me davam garantias de uma solução que eu achasse aceitável. De maneira que a minha posição foi a de cumprir as ordens que recebesse hierarquicamente. Nessa altura, era comandante da Polícia Marítima. As primeiras ordens que recebi foram do ministro da Marinha, para ir ter com ele a Lanceiros 2. E eu fui. Já lá havia alarido, mas saí pela porta, de carro, como entrei. Não aceitei ser evacuado de helicóptero. Fui logo ter com o ministro da Marinha a Monsanto, como ele me indicou, e estava já lá também o ministro da Defesa. Mas antes do 25 de Abril ainda houve uns probleminhas.

De que tipo?

Quando estava comandante da Polícia Marítima capturei no Porto de Lisboa um carregamento que ia para o MPLA num navio dinamarquês, o que provocou um conflito com a Guarda Fiscal e com os estivadores. E afundei outro navio que levava armas para a Frelimo, tinha bandeira do Panamá, e um armador de Marselha.

Assim às boas, sem mais problemas, dentro do Porto e Lisboa?

Não foi às boas. Com o carregamento para o MPLA houve um conflito com a Guarda Fiscal e com os estivadores. No caso das armas para a Frelimo, eu não admitia que chegassem lá, e servissem para matar homens nossos. O navio entrou no Porto de Lisboa por acaso, com uma avaria nas máquinas. Mas eu tive a informação sobre o carregamento, e fui falar com o ministro da Marinha, almirante Pereira Crespo. Sugeri-lhe obrigar a descarregar o material, e não deixar voltar a carregá-lo. Ele teve medo das reacções internacionais, e desaprovou. Depois fui falar com o ministro da Defesa, o Silva Cunha, e disse-lhe: 'Aquele navio pode sair do Porto de Lisboa, mas não chega a lado nenhum'. Ele só me disse para eu ter cuidado. E acho que tive. Para mim, era uma questão de consciência. Mandei colocar um engenho a bordo, com directivas claras. O navio lá saiu do Porto de Lisboa, e uns dias depois desapareceu, sem deixar rasto. Nem sei onde foi. Devem ter morrido os oito tripulantes. Depois do 25 de Abril ainda se fez uma investigação por causa de rumores (talvez algum dos mergulhadores tenha falado em casa, e a mulher contado alguma coisa no cabeleireiro), mas não deu em nada. Tudo o que se apurou é que o navio desapareceu, eclipsou-se, e nem eu sei onde. O que sei é que a Frelimo não recebeu o armamento.

Depois do 25 de Abril, o que é que a Marinha fez consigo?

O Pinheiro de Azevedo, que era o chefe de Estado maior da Armada, disse que eu não podia ser saneado, por ter a Torre e Espada e outras condecorações. De maneira que me disse ter a intenção de dar-me o comando de um navio. Adverti-o logo de que se um grumete quisesse dar-me ordens revolucionárias o atirava imediatamente à água. O almirante mandou-me então esperar por outra solução, por achar que eu não estava imbuído do novo espírito. Dois dias depois, informou-me que ia mandar-me para capitão do porto da Beira. Dias depois, chamou-me outra vez: como eu era amigo do Jorge Jardim, preferia mandar-me para Lourenço Marques. E eu até tinha preparado a família para irmos para lá. Mas dias depois voltou a chamar-me: tendo sabido que eu vivera em Moçambique, preferia então mandar-me para Luanda. Aí, a minha paciência esgotou: insultei-o, berrei, voltei-lhe as costas, e decidi requerer licença ilimitada – o que significava vir-me embora sem ganhar um tostão. Saneei-me a mim mesmo.

Passou a civil?

Pedi autorização para ir viver em Gibraltar, só para poder entrar e sair do país. Na realidade, fiquei por cá. Mas comecei a ver que não havia rei nem roque. Antes do 28 de Setembro, o general Spínola chamou-me, para falar da manifestação da Maioria Silenciosa [marcada para 28 de Setembro de 1974, visava apoiar Spínola contra o sector mais revolucionário do Movimento das Forças Armadas]. Lá fui.

Correu mal…

Sim. E ele quis saber quem o atraiçoou. Disse-lhe logo: o Chico, o Costa Gomes. Ele achava que era o Melo Antunes.

A nomeação do Vasco Gonçalves não foi disparatada, do ponto de vista dele?

Achou que teria na mão o Vasco Gonçalves, se o nomeasse primeiro-ministro. No 28 de Setembro, toda a gente lhe roeu a corda no Conselho da Revolução, incluindo o Freitas do Amaral. Todos votaram contra o Spínola, excepto o Diogo Neto, que por essa altura bateu no Vasco Gonçalves. O Jaime Silvério Marques quis matar o Costa Gomes, e o Spínola não deixou. E eu disse-lhe: “Grande erro, sr. general”.

E o que fazia então por cá o sr. comandante?

Fazia biscates. Trabalhei, por exemplo, com uma firma de mergulhadores. E a certa altura, o Teixeira Pinto, ex-ministro das Finanças e ex-administrador da Sociedade Financeira, levou-me para secretário-geral dos Explosivos da Trafaria. Foi aí que comecei a negociar em material de defesa, mas legalmente. Entretanto, os que achavam que a coisa não estava bem, como eu, iam falando uns com os outros.

Quer isso dizer que o 11 de Março não foi uma armadilha montada contra Spínola, como se chegou a dizer, mas um golpe preparado à séria?

Quisemos fazer um golpe palaciano. Quem fazia a guarda ao Palácio de Belém, onde funcionava a Presidência e se reunia o Conselho dos 20 [criado em Dezembro de 1974, como cúpula do MFA], eram os pára-quedistas. E havia um grupo comandado pelo António Ramos, um capitão spinolista, uma vez por mês. Actuaríamos no dia dele. A ideia era depois ir buscar o Spínola para voltar à Presidência, e deixar no Conselho dos 20 apenas os que estavam do nosso lado. Os outros iriam presos para Peniche. Até comprámos uma carrinha, que estacionámos lá perto, para os levar. Anos depois, quando voltei do exílio, ainda lá continuava a carrinha, mas já sem pneus. Ninguém se lembrou de a tirar dali.

Portanto um golpe à séria…

Tínhamos programado o golpe. Mas depois o Rosa Coutinho, que era inteligente, resolveu espicaçar o animal, 'para o fazer sair da toca' (como ele dizia) e o apanhar. O Spínola estava instalado em Massamá, na quinta de um irmão. E recebia ali toda a gente, incluindo muitos dirigentes do PS, como o Manuel Alegre, o Raul Rêgo, etc. E o PS estava cheio de informadores dos comunistas. Uma vez fui-lhe dizer que era perigoso falar com gente do PS, por causa das fugas de informação. Era a altura em que apareceu o ELP, os Corvachos, etc. Eu estava na minha vida, nos Explosivos da Trafaria, quando um dia alguém me apareceu com uma lista de uma Matança da Páscoa, que seria no dia 10 de Março, e tinha o meu nome. Por precaução, preparei-me para ir até Madrid. Mas alguém tinha ido avisar o Spínola – e ele quis fazer alguma coisa para evitar a tal Matança da Páscoa. No dia 10 de Março, ao ouvir os primeiros rumores, telefonei para o Spínola, mas ele já tinha partido para Tancos. Resolvi ir ter com ele, para ver se sabia alguma coisa. Quando lá cheguei, percebi que o plano era muito vago. Ainda assim, resolvemos andar com a coisa para a frente. Um dos que estavam metidos era o Salgueiro Maia, que no entanto não conseguiu fazer sair a Escola Prática de Cavalaria, e foi a Tancos de helicóptero avisar disso. E depois virou. Redigi um documento que era para ser lançado em Lisboa de avião.

O golpe não funcionou. Que mais falhou?

Houve hesitações, correu tudo mal. Nem sequer conseguimos silenciar o Rádio Clube Português e a Emissora Nacional, apesar de estar bem previsto. Quem se lixou? O velho, o Spínola, que teve de ir para Espanha de helicóptero. Eu fui a pé, porque tive de dar lugar no helicóptero a outros. Só essa minha fuga dava um livro de aventuras. Andei a pé, de camioneta, de táxi, à boleia com amigos, sempre em direcção ao Norte, que era onde me sentia mais à vontade. Para passar as barreiras, tive de deitar fora a pistola e os documentos, que foram encontrados, e levaram a que a perseguição contra mim se acirrasse. Num café, vi o meu retrato na televisão, como procurado. Não pude entrar em Chaves, porque o Costa Gomes, que também era de lá, mandou cercar as casas de toda a minha família. Acabei escondido por antigos empregados do meu avô, e passei a fronteira a salto, num dia de chuva. Fui para Madrid, e bati à porta do João Rocha, que tinha um apartamento no Eurobuilding, perto da Castelhana.

E foi então que criou o MDLP?

Sim, criámos ali uma organização, que começou por se chamar Frente de Libertação de Portugal, e depois mudou o nome para Movimento Democrático de Libertação de Portugal – MDLP -, para ter a palavra 'democrático'.

Mas entretanto o general Spínola não tinha ido para o Brasil?

Pois, ele tinha ido para o Brasil, e agravou-se o problema das hierarquias. Toda a gente tinha acesso ao Spínola, e ele baralhava-se. É preciso ver que o MDLP tinha muita gente, incluindo algumas notabilidades. O José Miguel Júdice, por exemplo, foi do MDLP. Tive de ir ao Brasil, falar com o Spínola, e tentar pôr alguma ordem naquilo. A organização era por células, como o PCP, para evitar que uns soubessem dos outros, e pudéssemos correr riscos maiores. Em Madrid, tínhamos contactos com a CIA, na embaixada dos EUA. Mas comecei a perceber que havia fugas de informação da própria CIA. Uma vez, para confirmar, lancei uma informação falsa, a de que íamos matar o Melo Antunes, para ver se a CIA a passava para Portugal. Passou. E só podiam ser eles, porque não se falara do assunto a mais ninguém, e nem sequer havia o plano.

E o que fez a seguir?

Tive de ir para o Brasil, depois de uma passagem por Paris. No Rio de Janeiro encontrei um oficial brasileiro que tinha conhecido em Portugal, e associei-me a ele. Fiz tudo: fui garimpeiro, fiz estudos económicos, fomos sócios de uma consultoria, e dedicámo-nos à agricultura numa bela fazenda. Foi um período grande da minha vida. Apesar dos verdes serem diferentes, as extensões do campo, na fazenda, faziam-me lembrar África. Ainda lá tenho parte de uma fazenda de uns 140 mil hectares. Uns 7%.

Quando voltou para Portugal?

Em 1978. Entrei clandestinamente. E só depois de me garantirem que não me chateariam é que me fui apresentar. O general Spínola, que já cá estava, ainda passou pela humilhação de ir responder a Caxias. Eu não.

Foi um regresso às armas?

Às armas, mas como administrador dos Explosivos da Trafaria. Já era entretanto em grande parte uma empresa pública. Mas ainda lá estive seis anos.    O comércio legal de armamentos não deixava de ser complexo. Depois, comprei com dois sócios a parte comercial da Companhia de Pólvora e Munições de Barcarena, que ficava onde é hoje o Parque dos Poetas, em Oeiras. Comércio de material de defesa. Estive em Teerão, na Somália, enfim, em guerras por esse mundo fora. Na Somália, apostei com o ministro da Defesa que as nossas granadas podiam ser disparadas de kalashes. Ganhei 10 camelos, e vi-me aflito com eles, até me aconselharem a doá-los à Organização de Libertação de Ogaden – que era deles, e lutava contra a Etiópia. Consegui ver-me livre dos camelos e fiz um sucesso.

E voltou finalmente ao princípio, à Guiné?

Saí de Barcarena entusiasmado com a ideia de voltar à Guiné. Quem me levou lá primeiro foi uma televisão espanhola, que queria fazer uma reportagem da Guiné comigo.

Foi para lembrar Conacri?

Quiseram centrar-se no relacionamento entre antigos combatentes. Sobre Conacri, só de raspão. Mas vi então que abandonáramos os que lá nos tinham ajudado. Uns foram presos, outros safaram-se, ou mudaram de nome. Há uns quatro ou cinco anos fundei lá a Liga dos Combatentes das Forças Armadas Especiais Portuguesas na Guiné-Bissau.

E as autoridades permitiram?

Os estatutos são legais. Mas depois achei que, para ajudar os guineenses, era preciso criar postos de trabalho. Comecei com uma fábrica de transformação de caju. Dava prioridade aos da Liga, depois aos familiares, e finalmente a todos os guineenses. Criei logo 300 postos de trabalho. O Governo vende-nos as castanhas de caju, que nós transformamos. Acabo de fechar um contrato de exportação de um ano.

E não tem problemas com os novos governantes?

Nenhuns. Tratam-me lindamente. Sou recebido quando necessito, e o primeiro-ministro sabe quem sou. Ter estado na guerra é uma mais-valia. Eles não têm muita consideração pelos revolucionários que outorgaram a independência e nunca mais lá puseram os pés. Comecei por ter contactos com o Nino Vieira. E ele, em vez dos negócios, queria era falar dos tempos da guerra. Gostam de conhecer o comandante que invadiu Conacri.