Lídia Jorge: ‘Nunca apoiei um político à espera de uma benesse’

É uma das mais destacadas vozes do panorama literário português. Nascida em Boliqueime, cresceu no campo sonhando ser escritora, desejo que concretizou em 1980 quando lançou ‘O Dia dos Prodígios’. Desde então, deu à estampa títulos como ‘A Costa dos Murmúrios’, ‘Combateremos a Sombra’ e ‘Os Memoráveis’, nunca deixando de participar em discussões políticas e…

Nasceu em Boliqueime em 1946. Teve uma educação católica?

Sim. Fui baptizada e a minha mãe, quando eu tinha 15 dias, fez cinco quilómetros comigo ao colo para me ir oferecer a nossa senhora. Uma coisa muito bonita. Imagino-a, a minha mãe muito jovem, magrinha, comigo, que era muito pesada, a fazer esses quilómetros. Os mesmos que mais tarde eu fazia para ir à catequese. Em pequena vivia no meio de toda essa mitologia cristã. Mas aos 14 anos comecei a pôr tudo em causa. Afastei-me da Igreja. Percebi que, por exemplo, na confissão, não havia direito de fazer determinadas perguntas. Era uma invasão da intimidade. Todo o ritual perdeu sentido.

O campo parece mais presente em si do que o mar. Da sua casa vê-se o mar?

Sim. Da varanda da casa dos meus avós, onde a minha mãe vive e eu passo férias, havia duas dimensões imensas. O céu e o mar. Não havia electricidade. Nas noites de Agosto, havia cinema no céu. E havia o mar ao fundo.

Ia muito à praia?

Havia o ritmo das estações do ano e o Verão tomava as pessoas com os trabalhos do campo. Só ao fim-de-semana se ia ao mar. A primeira vez que me lembro do mar devia ter uns seis anos. Foi a segunda imagem de infinito que tive. A primeira foi a do céu. Agora, para se ver céu assim, tem de se ir a sítios não iluminados, em África, na Ásia ou nos pólos. Mas naquela altura não havia este espectro no ar. Só a imensidão das estrelas. Eu perguntava sempre qual era a minha. Ainda muito pequena caí e fiz uma grande ferida na testa. Para estancarem o sangue pegaram numa casca de fava e puseram-ma na testa. E fomos na nossa mula ruiva até ao médico a meio da noite. Ele acordou, para fazer o curativo e a minha mãe disse: 'Ela traz uma fava na testa'. Ao que ele respondeu: 'Mas agora vai ficar com uma estrela'. Eu pensava: tenho uma estrela do céu na testa. Ficava a ver qual seria ela, se seria uma muito luminosa, se seria pouco, pensando que havia uma correspondência. Nunca a encontrei. Mas fazia parte do espírito mágico que eu vivia. O progresso era muito limitado no campo. Mas para a criança há sempre substitutos porque o mundo está nascendo.

 

   

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Como era o seu mundo?

Era muito mimada pela minha avó e muito disciplinada pela minha mãe. Mas era um mundo do paraíso. Abalava de manhã, só vinha a casa para comer. Era uma selvagem. As crianças andavam à solta, eu não tinha irmãos, o que queria era fugir de casa para ir brincar. Era uma vida em bando. Depois fui para a escola, um dos momentos mais alegres da minha vida. Era uma escola muito primitiva. Tive um choque muito grande. A minha caneta caiu, fui apanhá-la e olhei por baixo das carteiras. Quase  ninguém tinha sapatos. Eu tinha. Passados estes anos metade da humanidade continua sem sapatos. Era uma vida de uma liberdade enorme e com coisas maravilhosas. A professora pouco mais sabia que nós, era regente escolar. Mas aprender foi extraordinário.

Aprender a ler ou aprender o mundo?

Aprender o mundo. Há imagens que me ficaram para sempre e que atam o mundo do desenvolvimento ao mundo primitivo. Quando fazia frio os meus colegas faziam grandes fogueiras na escola. Eram manhãs em que, antes de se fazer luz, um bando de crianças fazia fogo com tábuas para se aquecer. É muito comovente. Estamos aqui na cidade, não o vemos. Mas a terra continua assim. Desenvolveu-se mas pode voltar a ser primitiva. Nessa escola aconteceu uma coisa de que nunca me hei-de esquecer. A nossa professora engravidou, começámos a ver a sua barriga a crescer, perguntávamos de quantos meses estava grávida… E havia uma lenda que dizia que quando a criança nasce e uma cobra anda por perto, que a cobra ia mamar na mãe e, cheia de artimanhas, para a criança não chorar punha a cauda na boca da criança. Ficámos em pânico com essa ideia. Um dia apareceu uma cobra na escola. E um miúdo, muito corajoso, apanhou-a com as mãos e matou-a. Mas fez um esforço tão grande que caiu desmaiado. Foi o meu Atlas, o meu São Jorge, a primeira vez que tive a ideia do triunfo do ser humano em relação ao perigo. Ele superou-se.

Fez o liceu em Faro. Como foi?

A minha mãe teve a percepção de que eu não podia ficar com a 4.ª classe, que era preciso que eu estudasse. Era filha única e ela separou-se de mim. Confiou em mim, mandou-me sozinha para a cidade, para Faro, para tratar da minha vida. Aos dez anos fui fazer o liceu e cuidar de mim sozinha.

Onde vivia?

Em casa de uma senhora que tinha dois quartos, muito pobres, na rua do Teatro Lethes. A nossa casa era a mais pequenina, a mais baixinha. Mas tratava-nos bem. Éramos três hóspedes, crianças a estudar. Fazia-nos a comida, lavava-nos roupa, cuidava de nós. Estudávamos e brincávamos.

Não se sentia sozinha?

Não. Aliás, esse é um sentimento que até agora não tive na minha vida. Pode ser que o futuro me reserve um momento em que eu diga: estou sozinha. Mas mesmo em criança estive sempre entretida com alguma coisa. Aliás, eu queria era fugir. A imagem mais antiga que tenho é de estar no campo, a ver o nevoeiro ao colo da minha mãe. A segunda aconteceu em Loulé, no Jardim de São Francisco, tinha uns três ou quatro anos. Perdi-me da minha mãe, porque andava sempre a fugir dela. Estava felicíssima. E um homem pôs-me ao colo e andou a perguntar de quem era a menina. Estava receando ser encontrada. Queria estar ao colo daquele homem, ficava alta, protegida, a ser passeada entre as pessoas. 

O seu pai e o seu avô emigraram para África. Recorda a sua partida?

Muito bem. Tinha quatro anos. É uma das imagens fortes da minha infância. Não privava muito com o meu pai, ele era viajante, andava pelo país de camião, fazendo distribuição de géneros. Mas a partida, o comboio na noite a chegar, que os levava para longe, para o desconhecido, ficou. 

Tinha ideia de quão longe ficava África?

Não. Havia um livro lá em casa, da minha tia, chamado ‘Finalmente’, que tinha imagens de África, todas a preto e branco. Por isso, achei que eles iam para um sítio sem cor. Representava sempre África na minha cabeça como essas imagens não coloridas.

Cresceu então no meio de mulheres?

Sim. Com a minha mãe, a minha avó e a minha tia, que morreu muito jovem. Foi para elas que comecei a ler. Havia a ideia de que a mulher tinha que ser como a galinha, útil em tudo. Por isso, à noite, elas ficavam a costurar, a bordar, a fazer cestos… E começaram a insistir para eu lhes ler. O que fiz mal comecei a juntar as palavras.

E o que lhes lia?

O que havia em casa: Júlio Dinis, Camilo… A minha avó tinha herdado uma arca com livros de um bisavô. A minha mãe comprava-me histórias infantis mas o meu desejo de começar a escrever, o meu contacto com a literatura, não foi com essas histórias. Muito cedo percebi que as fadas eram para crianças. Comecei a ler com o ‘Amor de Perdição’, o ‘Amor de Salvação’, ‘A Queda dum Anjo’… Eram livros esfarrapados, tinham sido lidos por muita gente. 

Quando surgiu a escrita?

Cedo. Comecei a fazer livrinhos aos nove anos. Escrevia e depois cosia as folhas com agulha e linha. Na primeira redacção que fiz no liceu, escrevi que queria ser como a Safo. Apanhei em casa, arrancada de uma ilustração portuguesa, uma imagem da Safo, muito bonita, agarrada a um rochedo a olhar muito lânguida para o mar. E dizia: Poetisa Safo de Lesbos. Pus a imagem numa moldura por cima da cama. Quando cheguei ao liceu, à aula de português, tinha que fazer a redacção. E escrevi: quando for grande quero ser como a Safo. Ora a professora foi andando pela sala a ver as redacções e eu tinha escrito Sapho como na imagem, com PH. Ela puxou-me as tranças e disse: 'Atenção, eu estou a pedir para me dizerem o que querem ser quando forem grandes, não estou a pedir uma fábula. Há aqui uma menina que está a dizer que quer ser como um sapo'. Queria-me levantar e dizer que não, que queria ser como a Sapho, a poetisa de Lesbos. Mas não fui capaz. Risquei e escrevi: quando for grande quero ser professora. Resolvi a questão. 

 

   

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Findo o liceu vai para Lisboa, para a Faculdade de Letras. Como foi a decisão de ir para a Universidade?

Foi uma conquista. O meu pai emigrou para África, depois para a Argentina e os meus pais acabaram por se desentender. E eu fiquei com dificuldades monetárias, era suportada pelos meus avós. Só poderia vir para Lisboa se tivesse uma bolsa. Consegui uma da Gulbenkian. Quando cheguei à Faculdade de Letras foi uma alegria muito grande. Lembro-me de que a primeira aula que tive foi com o Padre Manuel Antunes. Tinha entrado nos templos do saber, era uma vaidade imensa. Custava-me a adormecer e acordava muito cedo de madrugada. Tudo porque ia para as aulas.

Nessa altura ainda queria ser escritora?

Queria. Mas escondia. Era jovem e consciente de que era uma pretensão. Além disso o ensino não estava feito para isso. Éramos treinados para analisar, para despedaçar os textos, para percebermos o que é que os escritores queriam dizer. O meu ponto de partida era oposto: eu não sei o que quero dizer com isto e portanto escrevo. Ninguém nos dizia que a escrita parte de uma nebulosa, de um desejo indistinto de fazer alguma coisa. Tem-se apenas uma meta não clara. Parte-se caminhando, tacteando para o desconhecido.

Queria ser professora?

Não. Queria ser professora para escrever. Tínhamos que ter uma profissão. E sendo professora ia ter dois meses de férias no Verão, o Natal e a Páscoa. Imaginava que isso ia dar para escrever muitos livros.  

Mas recusou um convite para ficar como assistente na Faculdade de Letras…

Sim. Tinha acabado de fazer uma tese, sobre Fernão Mendes Pinto. Quando entrei na Peregrinação ia encantada. Depois de aplicar o modelo de análise estruturalista estava farta. Fiz a defesa da tese, deram-me uma nota muito elevada e convidaram-me para ficar como assistente. Voltei para Tomar, onde estava a dar aulas, de carro e, a certa altura, passei debaixo de uns plátanos. Havia imensas folhas e eu tinha a ideia de que o carro as quebrava. E na minha cabeça ia escrevendo um texto sobre o coração esmigalhado das folhas. Pensei: se voltar e ficar como assistente nunca mais posso escrever isto, não vou ter tempo. Se ficar a dar aulas no liceu fico livre para escrever. No outro dia telefonei a dizer que não contassem comigo. Para a família foi uma coisa incompreensível. Ser assistente na Faculdade de Letras era uma coisa que muita gente quereria. A minha recusa era inexplicável. Mas eu estava certa. 

Depois vai para África para se casar…

Fui para África no início dos anos 70. Acabei o curso, fiz à pressa um vestido branco, meti-me num avião e fui. Fui casar-me com um rapaz que estava a fazer a Guerra Colonial e tinha sido ferido em combate. 

Como foi chegar a África?

Continuava com a ideia de que África era a preto e branco. Quando cheguei encontrei um mundo genesíaco. Primeiro fui para Luanda, a experiência mais forte com a terra tive depois em Moçambique.

O seu marido estava em Luanda?

Sim, tinha sido ferido no leste de Angola. Tinha ficado com muitas cicatrizes e muito traumatizado psicologicamente. Custou-lhe muito ver morrer pessoas ao lado. Era horrível. Os rapazinhos saiam daqui e eram postos no meio do mato, com perigos de toda a natureza. E as pessoas iam sem acreditar no que iam fazer. Como se fosse um castigo. Iam enganados, a achar que iam fazer uma espécie de guerrilha de honra. Julgavam que iam defender uma causa de liberdade, não sabiam que iam defender os fascistas. Julgavam-se libertadores de países em desenvolvimento.

Mas lá a ideia era outra?

Junto das pessoas com quem privava havia a noção de que aquilo era contra a história. As pessoas estavam divididas entre um dever que iam cumprir e um direito que sabiam que não lhes assistia. A ideia de que as pessoas queriam ir para voltar com dinheiro para fazer uma casa e comprar um carro era errada. Fui testemunha do oposto. As pessoas queriam paz. Havia excepções. Mas quem ia ao mato e via os companheiros morrer, quem tinha amor e dó pelas pessoas africanas, quem se comovia com as crianças que nasciam no mato, quem percebia que a terra era das pessoas que estavam a matar, sofria. As pessoas queriam uma solução. Estive sempre com pessoas que, não sendo muito politizadas, viam que aquela era uma causa errada.

Era essa também a sua crença?

Sim, sempre. Fui dar aulas em Moçambique, na Beira. E o que eu via era um mundo ao contrário, aulas em que só cinco pessoas eram da região. O resto eram filhos de europeus ou de pessoas que estavam de passagem. A população estava mal representada. Uma vez um aluno, de quem eu gostava muito, faltou durante uma semana. Quando voltou disse-me que tinha ido à aldeia dele e que a tropa portuguesa a tinha arrasado. Não estava ninguém. Uns estavam mortos, outros tinham-se ido embora. Vivi esses anos com uma grande angústia. Era um mundo que morria. Estávamos a fechar a porta a uma era. 

Quando tempo lá esteve?

Um ano em Angola, dois e pouco em Moçambique. 

O seu marido esteve esse tempo todo a combater?

Sim. E eu vivia em messes com as mulheres dos militares. Era uma situação claustrofóbica. As pessoas só falavam da guerra. A morte estava sempre presente. Lembro-me de tomar o pequeno-almoço com um piloto e, passadas duas horas, ele estava morto. Já nem víamos a viúva e os filhos, as pessoas desapareciam. Era um horror. Existia uma política de segredo completo. Um dia, eu estava no cinema e vieram-me dizer que um major que era casado com uma educadora infantil de quem eu gostava imenso tinha morrido. Meti-me no carro e fui para casa dela, para a amparar. Quando cheguei não vi ninguém. Toquei, ela apareceu e ainda não sabia. Mas olhou para os meus olhos e disse: 'O meu marido morreu'. Ainda ninguém lhe tinha dito. Levei-lhe a notícia da morte nos olhos. De África fiquei com uma ideia: estamos sempre à beira de iniciar uma guerra. Mas também estamos sempre à beira de a evitar. A teoria de que a humanidade precisa de se expurgar pelo sangue vai contra o desejo humano. A ideia de que ciclicamente há uma purga que é necessária é horrenda. Agora está no ar a ideia de que a terceira guerra mundial está a caminho. Mas se queremos inaugurar um mundo novo temos que evitar isso. Todas as vozes se devem conluiar no sentido de impedir essa coisa tremenda.

Quando volta de África?

Com o 25 de Abril. Foi dos dias mais felizes da minha vida. Só se percebeu que estava ganho à noite. As notícias chegavam pela rádio. A minha orelha ficou o dia todo colada ao vidrinho de plástico. Foi muito forte.

Fizeram uma festa?

Não. Percebeu-se que ia ser tudo muito complexo, que a festa tinha várias pétalas lindas e vermelhas mas que algumas iam ser de sangue. Quando regressei, nos primeiros dias de Setembro, muitas das vivendas a caminho do aeroporto já não tinham vidros. Era o movimento da história. E era inevitável. Muita gente pensou que ia haver um abraço fraterno. Mas isso era impossível. Tinham sido demasiados anos. A reconciliação era impossível. Tinha que haver um momento de confronto. Havia um ressentimento enorme.

Quando voltou veio para Lisboa?

Sim, vim dar aulas. Primeiro fui para o Liceu Dom João de Castro, depois para o Liceu Dona Leonor.

Publica o seu primeiro romance, ‘O Dia dos Prodígios’, em 1980. Vergílio Ferreira foi um dos seus primeiros leitores. Como?

Conhecia bem a sua mulher, a Regina Kasprzykowsky, que era minha colega no Liceu D. Leonor. E lembrei-me de lhe perguntar, como eu admirava muito a obra do Vergílio, se ela podia mostrar ao marido. Ela mostrou-se reticente mas levou. E nessa tarde, telefonaram-me. Ele pediu à Regina para perguntar que autores é que eu tinha lido para escrever aquilo. E depois ele próprio veio ao telefone e fez a pergunta, começando a falar comigo. Disse-me que já tinha começado a ler. Devolveu-lhe o telefone e ela disse-me que ele daí por uns dias me falaria. Era a porta-voz do adiamento. Só que ele no dia seguinte telefonou e disse que tinha lido tudo. Foi muito bom. Desejo a toda a gente que tenha um dia equivalente. É como uma espécie de bandeira que a gente leva a vida toda. Convidou-me para ir falar com ele e eu fui. E fui amiga dele para sempre.  

Foi uma vida inteira a saber que queria escrever, mas só em 1980 avançou. Porque tardou tanto? O que a levou à escrita nessa altura?

Eu tinha a ideia de imperfeição. Sempre escrevi imenso. O meu pai e a minha mãe faziam diário. A ideia de escrever fazia parte do meu mundo pessoal. Eu queria publicar mas tinha a ideia de que ainda não tinha escrito à altura. Tinha escrito coisas que achava que não valia a pena mostrar a ninguém. Não queria fazer ensaio em público. Ao publicar queria poder sentir o orgulho de ser uma coisa completa, perfeita. Quando acabei ‘O Dia dos Prodígios’ tive essa sensação. Podia não ser perfeito, mas tive a ideia de que tinha escrito um livro inteiro, que eu não poderia melhor. Estava satisfeita e não tinha vergonha de o mostrar. Tinha honra e a segurança de que levava ali alguma coisa com uma certa importância.

Esperava que a recepção fosse tão boa?

Não. Nem sabia o que era uma recepção, não conhecia um jornalista. A parte pública do escritor não me interessava nem preocupava. O que eu queria era ver o livro impresso. A minha relação era com o editor. Imaginava que os leitores fossem apenas uma dúzia de pessoas amigas. Tanto que ofereci um dos primeiros livros à porteira aqui do prédio. Depois tive um grande espanto. E medo. Achei que era sorte. E que ia iniciar um percurso difícil. Que o próximo livro que publicasse não ia ser tão simples. Que aquilo tinha sido um baptizado feliz mas que o caminho ia ser longo e duro.

E foi duro?

Menos do que eu pensava. Tem uma parte dura mas a escrita resgata imenso. Só se publica porque se escreve, porque é bom escrever. Escrevermos com a ideia de que somos uma voz, de que estamos perante alguém com quem dialogamos, e que estamos a tentar interpretar o tempo que vivemos é uma coisa tão forte, tão intensa, tão envolvente, tão fusional com o mundo, que é muito importante.

Qual é então a parte dura?

É ter-se muitos projectos e a vida concreta os impedir. Fui professora até muito tarde, uma profissão que é dura. E depois há o envolvimento com a turbulência familiar. É diferente ser-se uma escritora ou um escritor. Não queria ir por aí, não vale a pena as mulheres brandirem essa bandeira. Mas um homem escreve e tem na sua família um exército de gente que ajuda à volta. A mulher tem um exército de gente que impede a escrita. Há meses em que não há uma pessoa que fale comigo do universo que escrevo. As mulheres dos escritores homens sabem o que eles estão a escrever, ajudam-nos. E se não são as mulheres, são as amantes, as secretárias. Mas tomei como princípio não usar a estratégia do lamento ou da distinção. Só podemos mudar isto através da nossa competência, do valor, da seriedade, da deontologia, da ética. A sociedade vai-se fazendo. Hoje vemos os jovens homens terem muito mais respeito pelo trabalho das mulheres, pela criação das mulheres. Há uma partilha de mundos mais equitativa.

Sentiu-se sempre uma mulher num meio de homens?

Sim, mas a minha companhia foi grande porque muitas mulheres apareceram na mesma altura que eu na área da ficção. Aparecemos como um grupo, não coeso do ponto de vista da estética, não coeso do ponto de vista do pensamento, mas bastante coeso no sentido de aparecermos como um grupo de gente que vem para não ceder, para dizer: a nossa voz é a nossa voz, não imitamos ninguém e estamos aqui para não deixarmos o nosso terreno por mãos alheias. Há companheiras da escrita que vêm de trás e estão aqui, como a Maria Teresa Horta, a Isabel Barreno, a Teolinda Gersão, a Hélia Correia, a Luísa Costa Gomes…

É o facto de não ter um exército à sua disposição que a faz isolar-se para escrever?

Também. Seria errado se eu dissesse que o meu marido, o Carlos Albino, não me ajuda. Ele ajuda-me na parte técnica, fala comigo. Mas fica fora do universo. E tenho a sorte de o meu filho, que é editor, me ler os livros. Tenho muito respeito por ele. Vou para o Algarve porque é mais fácil. Por um lado posso caminhar. Por outro há a fuga de Lisboa, onde as solicitações são muitas. Gosto das pessoas, de lhes responder, de estar entre elas. Se eu não tenho a disciplina de me isolar não faço nada. Não consigo criar. Já passei dois anos só a escrever textos para amigos.

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Onde escreve?

Na casa da minha mãe, no sítio onde a minha avó amassava o pão, perto de um forno de lenha que ainda temos lá. É um sítio com um pé direito muito grande, uma casa que nunca aquece. O meu avô tinha fornos de telha e de tijolo, podia fazer uma casa com um pé direito muito alto. E fez. Dizia que era a sua catedral. Escrevo na catedral do meu avô. Temos estas fantasias de que não estamos sozinhos porque nos lembramos daqueles que nos amaram muito. E eu lembro-me do meu avô. Portanto, por que é que ele não está a olhar para mim? Talvez esteja. É tudo um mistério.  

Tem tido voz activa na sociedade, no que acontece no país. Sente esse dever?

Não é por dever, é por temperamento. Talvez a vida de Boliqueime, daquela aldeiazinha, me tenha feito sentir que o político é que conduz a história. Mas é uma questão de temperamento. Há escritores que por temperamento não querem estar no meio da política. Outros fogem por estratégia. Em relação à política, às vezes sinto-me uma prostituta da esperança. Apanho desilusões mas depois basta aparecer alguém que acena com uma melhoria e eu acredito logo. Sinto-me contente pela ideia de que posso ajudar outros a seguirem aquilo que eu própria penso que é melhor. Sei que é uma altivez ter a tentação de influenciar pessoas. Mas nunca vou à espera que alguém me dê alguma coisa. Antes pelo contrário. Quando apoio alguém recebo insultos. E jamais apareço junto dessa pessoa a pedir seja o que for. Há os que pensam que se apoia um político para se ter algum benefício. Não. Nós apoiamos um político para pessoalmente termos prejuízos mas a acreditar que, colectivamente, vai haver benefícios. Nunca apoiei um político a pensar que vou ter uma benesse. E nunca recebi uma benesse por apoiar alguém..

Já se arrependeu de ter apoiado alguém?

Até agora não. A primeira vez que apoiei alguém foi o Mário Soares. E, desde aí, sempre que apoiei, a razão veio-me dizer que aquela pessoa pode não ter terminado bem, mas quando começou, começou melhor do que os outros. Acho que nunca me enganei no cavalo. Às vezes o cavalo partiu a perna. Mas isso é outra coisa. Por isso continuo disponível, escrevo discursos, vou para cima de palanques. Não é uma coisa que goste de fazer. Mas, na altura, acredito no projecto. É o jogo da vida. Em geral utilizo uma argumentação clara e que penso ser corajosa. Procuro não ofender ninguém mas dizer, por coisas positivas, o porquê de apoiar aquelas pessoas. Mas quando vejo que o meu cavalo vai partir a perna, faço questão de avisar.

Tem já trinta anos de carreira literária cumpridos. O que a continua a chamar para a escrita?

A própria essência dela. Passados 30 anos sinto-me perante a escrita como antes de ter escrito ‘O Dia dos Prodígios’. É a mesma vontade de criar um universo paralelo que questiona o universo real. A mesma ideia de que posso organizar sobre o papel um mundo que questiona este mundo, que pode ter instrumentos de inquietação e de denúncia lá dentro, mas que é envolto numa estrutura de beleza. Se vou usar as palavras para tocar o sino a rebate, então que o faça com um bom som, com um bom timbre. E que chegue o mais longe possível. Sinto-me como em vésperas de 'O Dia dos Prodígios'. Por fora vamos mudando, mas por dentro temos sempre 18 anos. Com a mesma esperança, a mesma inspiração. Estou sempre à espera de escrever um belo livro que ainda não escrevi.

É a homenageada do Escritaria, festival que decorre em Penafiel até domingo. Como recebeu o convite?

Com naturalidade. A partir de certa altura as pessoas começam a ter vontade de fazer uma retrospectiva do que fizemos. Não estava à espera e fiquei feliz. Dá-me a impressão que vai ser uma espécie de festa de aniversário que me vão fazer, uma festa entre pessoas amigas que vão falar sobre os meus livros. 

O festival centra-se na obra de um único escritor. Como antecipa estes dias?

Assisti ao Escritaria dedicado ao Mário de Carvalho. É um modelo interessante. Além de haver uma espécie de homenagem ao escritor há um grande envolvimento com a cidade. Faz-se uma homenagem a um escritor mas, no fundo, é a literatura portuguesa que é a homenageada. Há a possibilidade de uma população inteira contactar com a literatura portuguesa e homenageá-la através de um rosto. 

Acaba de lançar 'O Organista', um conto em versão bilingue. Como surgiu?

Tenho muitos contos publicados e na gaveta. Mas este tem resistido a todas as tentativas de ser incluído numa antologia. É muito diferente. E especial. Como foge do ambiente de todos os outros surgiu a ideia de que poderia ser uma peça única. Além disso, publiquei há meses 'Os Memoráveis'. E ao mesmo tempo que a literatura em Portugal está em ascensão, no reconhecimento de que é importante, insubstituível e uma pérola dentro das artes, é também um reduto. Quando se esperava que fosse uma arte com grande expressão em termos de público, está a ser reduzida. Este conto, breve e bilingue, serve para não onerar o meu projecto literário na editora.

Em que sentido?

Faz parte do Escritaria haver um livro novo. Neste caso desejou-se que esse livro não engolisse ‘Os Memoráveis’, que ainda está a ser discutido. Este livro não compete com ele, acompanha-o. Escrevi este conto há uns quatro anos e foi publicado numa colecção editada em Estrasburgo, chamada Ficções Europeias. Foi um convite do Centro de Estudos Espaciais que pediu a escritores europeus um conto sobre o espaço. Fiz um apanhado sobre o que se sabia sobre o espaço. A cada dia há descobertas, é imenso e quase ofensivo para a dignidade humana. É uma dimensão que ultrapassa a nossa concepção, um finito infinito. É tão provocatório que a minha interrogação passou da parte cosmológica física para a parte ontológica e para a interrogação do destino humano. Criei um conto sobre um homem que está no meio de um mistério e não sabe qual é o seu destino, a sua origem ou para onde vai. E que é arrogante perante o que imagina ser a divindade. Assim surgiu ‘O Organista’. Com Deus invejoso da felicidade do homem.

Tal como nos seus últimos livros a música está presente. Porquê?

Não sou uma ouvinte diária de música. Mas quando a oiço há uma espécie de vibração total. A literatura é uma arte lenta, que envolve todos os sentidos e domínios do nosso cérebro, uma espécie de discernimento lógico permanente. Todo o saber, o raciocínio e a lógica estão presentes quando lemos. Na música isso fica submerso, temos a sensação de uma levitação completa. A escrita é lenta como uma charrua. A música é um vento que passa. A escrita rasteja pelo chão, a música vai pelo ar.

É um conto escrito para um centro espacial mas tem um lado muito místico, com a presença do criador. Porquê?

Acho que a ciência interpela uma totalidade, como uma toupeira, que vai no escuro furando, furando, sem que se veja o fim. A pergunta das causas primeiras e finais está sempre presente na ciência que nunca explica a causa primeira. Mesmo a pessoa que se considere mais ateia e materialista pergunta sobre o sentido disto. A vida humana não é fácil. Somos projectos incompletos e inacabados face ao nosso desejo. Desejamos mais perfeição, amor, não termos dor. Estamos sempre insatisfeitos. A inquietação é o que define o ser humano. É um absurdo que tenhamos nascido ou nos tenhamos desenvolvido com um desejo tão grande de conhecer a totalidade e que esse conhecimento nos seja negado. É o maior mistério que nos envolve.

É uma pessoa religiosa?

Sou uma mística cega. Tenho um grande desejo de compreender a totalidade, não por mim mas por nós, pela humanidade. Gostava de ser habitada por uma certeza religiosa. Mas a minha única certeza é poética, do domínio da interrogação. Invejo imenso os iluminados que dizem 'eu tenho a certeza'. Eu sou arrogante. Tenho a arrogância de não me conformar com esta natureza questionante, que pergunta e não encontra resposta. É injusto.

Acha que a resposta virá ou que quando uma pessoa morre tudo acaba?

Acho um absurdo ir para debaixo da terra e acabar tudo. Quando vou a um cemitério tenho a sensação de que os que morreram não estão ali. Quando visito a campa da minha família em Boliqueime penso: não estão aqui. Há uma revolta perante a finitude. Pergunto-me se isso não é uma criação da nossa configuração biológica. Os teólogos dizem-me: 'o que te falta é a fé'. Mas pelo raciocínio é muito difícil ter fé. Há quem diga que sou uma ateia, uma agnóstica sem remédio, que contamino as outras pessoas. Se o faço peço desculpa. Não quero contaminar. Mas não posso mentir. Quando não temos a certeza é bom dizermos que não a temos. Acho que a maior parte das pessoas não tem a certeza. É uma dúvida legítima e deve ser respeitada. 

Veja alguns momentos da entrevista ao SOL:

rita.s.freire@sol.pt