O amante impetuoso

Já me aconteceu. Mas eu não sou tida nem achada neste assunto universal. Na verdade, isto já aconteceu a toda a gente; pessoa que é pessoa, já passou por este momento.

Esqueçam aquela coisa do correio ter caído em desuso, o revivalismo do correio físico e a música do Tony de Matos. Ainda recebemos cartas. Tal como no teatro há uma mensagem clássica associada à presença de uma mala fechada, no envelope fechado há um estatuto, uma mensagem clara. Sim, mesmo que já tenhamos aderido à factura electrónica e respondamos a todos os convites a eventos pelo Facebook. Para todos os efeitos, a carta em envelope fechado ainda é uma das formas de oficializar mensagens. E de coagir.

Quer desçamos as escadas do prédio, atravessemos o jardim da moradia ou abramos simplesmente a portinhola do apartado, quando verificamos o nosso correio todos temos em comum um remetente prepotente que nos atormenta sempre que nos escreve: a Autoridade Tributária e Aduaneira.

É verdade.

Os três ou quatro segundos em que reconhecemos aquele logótipo azul no canto superior esquerdo do papel de carta-envelope, com a nossa morada impressa a preto na fontezinha pixelizada que eles tanto gostam, as pernas tremem-nos que nem varas verdes. Porque a Autoridade Tributária e Aduaneira é como um amante com problemas psicológicos: imprevisível, impossível de controlar, volátil. Nunca se sabe o que vem dali. Com a carta na mão, ainda por abrir, é preciso decidir o que fazer: destacar os picotados laterais que permitem abrir aquela folha toda ela picotada, ou ignorar a carta e seguir com a nossa vida. Tal como com os amantes obcecados. É uma questão de escolha.

A primeira hipótese, a correcta, a católica apostólica romana, do sacrifício, é aquela que nos vai sugar tudo até ao tutano. Dos três tostões que com imenso esforço amealhámos, àquela parcela de uma casa que a Tia Frasca deixou em nosso nome lá para trás do sol posto, as Finanças, como um stalker num bom thriller, sabem tudo e fazem questão de nos mostrar que sim, que sabem tudo e que, ainda por cima, sabem muito bem como levar tudo aquilo que sabem que existe num ápice, sem olhar para trás. Sem dó nem piedade. Sem pejo por nos partirem o mealheiro – perdão! – o coração.

Resta-nos sempre a segunda opção, aquela em que, como as cartas não vêm registadas com aviso de recepção, conhecem um destino maravilhoso, numa outra morada, numa outra galáxia de preferência distante, e é como se nunca tivessem chegado. Reduz-se a matéria. Separam-se os átomos. As palmas das mãos nunca chegam a suar, porque o tratamento é glaciar. Amor com amor se paga, e se as Finanças não me amam, então não vou amar as Finanças. É mais ou menos este o mood de quem escolhe a via não-religiosa.

Lamento não possuir a audácia necessária para queimar documentos assim do pé para a mão. Temo a Zeus. Enfim… Uma das incontáveis heranças da nossa educação 'laica'!

Conheci, no entanto, e através destas cartas de amor, uma pessoa que é o exemplo perfeito de quem decidiu optar pela segunda hipótese e ser livre como o Freddy Mercury. Falo-vos de alguém que certamente não sua das palmas das mãos. Todos os dias recebo um daqueles envelopes para Ela. E todos os dias escrevo com uma caneta que deixo para o efeito dentro da caixa de correio – 'já não reside aqui'. Só que o amor deste amante é grande demais e não pára. Não se consola. Quer mais. Não desiste até a encontrar e resolver o assunto.

As notícias que podemos ler sobre as receitas do IRS neste ano de profunda crise (mais um), dão conta da AAT como sendo uma amante impetuosa, pérfida e prepotente, que não merece um tratamento cristão.

Há dias falava com o meu Pai sobre as Finanças e a sua prepotência sobre o indivíduo. Chegámos à conclusão que Portugal é um Estado Fiscal, pagão, a brincar às amantes de Zeus, o todo-poderoso polígamo, bem intencionado, que à semelhança do que sucedeu com Sêmele, se mostra em todo o seu esplendor para a seduzir e arrasa tudo à sua volta, sempre sem querer, adoptando depois formas de remediar o que fez. Resta-nos saber quando nasce o pequeno Dionísio que o Estado coseu na sua coxa, por ser prematuro.

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