Orlando Raimundo: ‘Marcello criou uma auréola aristocrática’

‘A Última Dama do Estado Novo’ é um ensaio biográfico, agora reeditado com novos dados, que revela inúmeros aspectos da vida privada de Marcello Caetano. De origens muito humildes, o chefe de Governo deposto pelo 25 de Abril viu a mulher sucumbir à doença mental, pondo a filha Ana Maria no lugar de Primeira Dama…

Em que contribui 'A Última Dama do Estado Novo' para diminuir o desconhecimento que temos do marcelismo e da figura de Marcello Caetano?

A Itália e a Espanha estudaram os seus regimes totalitários. Nós conhecemos muito mal o Estado Novo e conhecemos o marcelismo ainda menos do que o próprio salazarismo. A ideia que se tem hoje em dia, de que o Salazar é que era o pobrezinho, de uma família muito humilde, não corresponde nada à verdade. O pai do Marcello Caetano era um Zé ninguém da Serra da Lousã que aos 12 anos veio para Lisboa à procura de melhor vida. O Salazar era filho de um feitor, um homem humilde, mas remediado. A origem do Marcello é claramente pobre. O que é que isto interessa? Conta qual foi a origem dele, como ele vingou na vida, nomeadamente encostado a uma família nos antípodas, uma família burguesa e republicana, os Queirós de Barros. E depois, a relação dele com a mulher, Teresa Barros, que sofria de uma doença mental e que Marcello escondeu de toda a gente. O livro fala também de como Marcello constituiu o grupo que o guindou ao poder, o Grupo da Choupana, e de como ele sacrificou a vida pessoal da filha, para ela se dedicar à mãe e acompanhar o pai nos acontecimentos públicos.

Como é que o Presidente do Conselho conseguiu manter esta cortina sobre a vida dele? Mesmo na altura era estranho que não se soubesse nada desta história …

Em primeiro lugar havia a censura; a senhora morreu em 1971. Nesse período a censura não deixava passar nada. No período logo a seguir ao 25 de Abril havia outros interesses e a história manteve-se desconhecida até que decidi contá-la. A doença da mulher não é o único ponto obscuro da vida do último chefe de Governo da ditadura. Ele detestava os pobres, escondia as suas origens humildes; os amigos que arranjou foram sempre ricos. Criou uma auréola aristocrática completamente falsa que ainda hoje confunde as pessoas.

O que lhe interessou no lado pessoal?

Sem a explicação do lado familiar não se percebe muito bem o Marcello. Quando nos perguntamos o que foi o marcelismo, a resposta não inclui elementos só de ordem política. Se ele tivesse tido uma mulher saudável teria sido diferente? Não sabemos. A vida dele foi muito condicionada. Ele teve que montar um hospital de campanha em casa para cuidar da senhora. Isso custava muito dinheiro, não podia ter desprendimentos. Noutra circunstância talvez pudesse ter porque a demarcação do salazarismo implicava um risco, até financeiro. O aspecto familiar tem muita importância para perceber a personagem. Ultimamente o Marcello tem sido apresentado, de forma benevolente, como um homem que não conseguiu abrir o regime. Mas ele foi de uma grande crueldade com a filha. Podia ter internado a mulher numa clínica em vez de obrigar a Ana Maria (a única mulher entre os quatro filhos do casal) a cuidar da mãe. Mas não pôs a mulher na clínica por temer que isso fosse conhecido, a doença mental era um grande tabu. Só muito mais tarde, com a doença muito avançada, o faria. A mulher chegou a sofrer uma lobotomia – intervenção criada pelo Nobel português Egas Moniz e que foi feita por um assistente ainda vivo.

Diz no livro que Ana Maria Caetano sacrificou a vida pessoal. Até que ponto o fez?

Embora ambos o tenham negado recentemente, tenho provas de que Ana Maria e Adriano Moreira estiveram noivos. Ela encomendou o enxoval a uma modista do Porto, a Agostinha D'Além, que quando o noivado terminou vendeu a retalho as peças encomendadas. Quando fiz a primeira edição do livro, em 2003, a Ana Maria Caetano pediu-me para não falar nisto e eu respeitei. Mas, entretanto, acho que isso prescreveu. Tem havido tantas tentativas por parte dela e dos derrotados do 25 de Abril de reescrever a História que acho que ninguém tem o direito de fazer o que Estaline fez como Trotsky. Não podemos apagar o que acontece. Ninguém tem esse direito.

E porque acabou o namoro?

Porque o estado de saúde de Teresa de Barros se agravou. E Ana Maria que estava vocacionada para casar desde os 20, acabou por casar aos 59.

Que explicação se dava quando ele aparecia com a filha?

Não se dava e toda a gente assobiava para o lado. Desfilar ao lado de uma mulher era uma imagem de marca que lhe interessava e ele sacrifica a filha sem pudor nenhum, embora ela tivesse alinhado nisso. Era um contraponto à imagem do Salazar solteirão. A Ana Maria Caetano era uma mulher muito bonita e bem vestida, muito fotogénica. A estilista que a vestia era a mesma que trabalhava para a Amália. Quando ele a leva à visita a Londres, em 1973, e os fotógrafos estão à espera de uma 'velha carcaça', vêem uma mulher deslumbrante e ficam doidos. Essa operação de propaganda em que ela era uma peça chave foi, no entanto, completamente estragada pelas notícias de Wiriamu, em Moçambique, onde houve um massacre conduzido pelas tropas de Kaúlza de Arriaga e que o padre Hastings relatou ao Times. A operação de charme foi estragada por a opinião pública inglesa estar chocada com o regime português. Estragou-lhe a festa.

Além desta história que dá nome ao livro há outras.

O livro tem quatro partes. A primeira é sobre as origens humildes de Marcello Caetano, a sua aproximação a Henrique de Barros, de quem se torna amigo, a criação do Grupo da Choupana e a doença da mulher. A segunda parte, que é a essencial, é sobre o papel e o drama de Ana Maria Caetano. A terceira parte é sobre a Guerra Colonial a que chamei a 'Herança Fatal do Colonialismo', no pressuposto de que não sabendo ele resolver a Guerra Colonial estava condenado. A quarta parte tem um encanto especial para mim e é onde se conta seis histórias sobre o que acontece no dia 25 de Abril de 1974, e depois o exílio na Madeira e no Brasil.

Há dados novos?

Sim. Sobre a forma como reagiram o Rui Patrício e o Moreira Baptista e as três perguntas que o Marcello Caetano fez ao Salgueiro Maia quando ele o foi buscar ao Convento do Carmo. E depois há uma história que nunca tinha sido contada com clareza: o Spínola e o Costa Gomes queriam manter a PIDE nas ex-colónias depois do 25 de Abril. E há também um episódio que considero arrepiante. O Marcello Caetano determinou com rigor a data da sua morte. Disse daqui a uma semana faço 50 anos de casado e vou passar esse dia com a minha mulher (que tinha morrido em 1971). E ele morreu nesse dia de um ataque cardíaco fulminante. 

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