Diálogos obscuros

Há dias sonhei que a voz de Deus me dizia, num tom impaciente: “Ponho-te a Agustina boa e a escrever por muitos anos, mas tens de me prometer que nunca mais escreves nenhum livro”. Respondi-lhe de imediato que sim, e ainda acrescentei que o mundo beneficiaria a dobrar.

Diálogos obscuros

Não o disse por humildade mas por impulso de alegria – e também por causa da mísera vaidade de fazer uma graça.

Agustina aproximou-se com o seu sorriso largo e ralhou-me: “Tonta! Então a menina cede logo assim a pressões? Esperava mais de si”.

Retorqui-lhe que com Deus ou com o Diabo não adianta negociar; o que vem de Deus aceita-se, o que vem do Diabo enxota-se – e não podemos ficar a matutar nisso, sob pena de acelerarmos a nossa redução a cinzas.

Isto aprendera eu, aliás, com a própria Agustina: “Ora, ora; nenhum ensinamento é fixo”. Acrescentou que não me preocupasse, porque ela mesma iria entender-se com a tal Voz, que lhe parecia mais diabólica do que divina. “Agora precisamos é de um chá forte”, rematou, agarrando-me a mão e conduzindo-me pelo seu jardim.

Tenho sonhado este sonho, com algumas variantes, inúmeras vezes ao longo dos últimos oito anos.

Creio que o escrevo agora na esperança de que se realize, posto que o silêncio não tem demonstrado eficácia.

Numa carta de 1997 Agustina explicava que, por motivo de doença, não poderia estar no lançamento de um livro meu, e escrevia: “Creio que, assim como veio, irá embora este desentendimento comigo mesma. Donde virá? Qual a causa? A Vieira da Silva pensava que as doenças são encontros com a morte em que resvalamos, voltando ao equilíbrio por uns tempos. Eu acho que são diálogos obscuros com o que não ousamos ter conversa”. Quase no fim da carta, escrevia: “Olhe para o lado e 'um tempo me verá e outro tempo não me verá'“.

Vejo Agustina todos os dias; há sempre na minha mesa-de-cabeceira um livro seu, que abro ao acaso antes de dormir. É essa a minha oração diária.

Recordo aquele fim de tarde de 2008 em que Eduardo Lourenço leu em voz alta uma página de Um Cão que Sonha e concluiu: “Perguntam-me o que é a poesia? É isto”.

Releio O Sermão do Fogo, romance de 1962. Atraso trabalhos e contas, desligo os telefones. Aos 52 anos tem-se pelo menos a consciência das prioridades. A protagonista d'O Sermão do Fogo está à beira dos 60 anos quando começa o livro, e escreve Agustina: “peço aqui que compreendam esta preferência por uma personagem que não interessa insistentemente senão ao seu dentista, mas, antes do meio século, meus amigos, ninguém tem história”.

No próximo dia 15 a escritora completa 92 anos, e o Círculo Literário Agustina Bessa-Luís organiza na Fundação Calouste Gulbenkian (a 14 e 15) um Congresso Internacional subordinado a dois temas centrais da obra agustiniana: Ética e Política.
“Pobre gente de cem mil pés, de asas de metal, de ofícios cada vez mais profusos e candidatos aos sucessos caricatos! Não cantam, não vêem, não param, nunca. Têm maneiras estranhas, dir-se-ia que são pagos para marchar rapidamente, para ir até ao fim da rua e voltar, para competir apenas e nada mais”. Estas palavras políticas de hoje, escreveu-as Agustina há 52 anos.