Interdito a pobres

Nas ruas de Higienópolis já não se fala do menino-passarinho que em Agosto perturbou a paisagem e quase manchava o glamour deste bairro de São Paulo. O jovem negro de 15 anos, sem documentos, que se abrigou em cima de uma árvore durante duas semanas, depois de fugir de casa da mãe em Cachoeiras de…

Agora fala-se de eleições e do que por aqui se diz ser o fim de ciclo de Dilma Rousseff na liderança do Brasil. Para os cerca de 90 mil moradores deste bairro nobre no centro da capital paulista, a surpreendente passagem de Aécio Neves, do Partido Social Democrata Brasileiro (PSDB) ao segundo turno das eleições Presidenciais, a 26 de Outubro, é muito mais do que uma contagem de espingardas com a sucessora de Lula da Silva e candidata à reeleição. Aécio Neves é a última esperança para uma elite que se diz órfã de representação no Palácio do Planalto, em Brasília, e que reclama mais do que políticas sociais para tirar os pobres da extrema pobreza ou para trazer mais brasileiros para a classe média e para a linha de consumo.

Higienópolis é um endereço da classe média-alta/alta. Um apartamento de duas assoalhadas custará um milhão de reais (330 mil euros) e um de cinco não será comprado por menos de cinco milhões de reais (mais de um milhão e meio de euros).

O 'lugar de higiene' nasceu pelas mãos de dois capitalistas alemães, que se inspiraram na arquitectura francesa do século XIX para tentar recriar o modo de vida das capitais europeias. Nas mansões mais antigas, entretanto reconvertidas para receberem os confortos modernos, vivem descendentes de famílias tradicionais da aristocracia paulista, grande parte de origem portuguesa. A vizinhança conta com famosos como Fernando Henrique Cardoso, Jô Soares, Rita Lee, Marília Pêra ou Adriane Galisteu, e uma das maiores comunidades judaicas de São Paulo, proveniente da América Central e que se refugia para oração numa das três sinagogas do bairro.

Foi também daqui que saiu um cartão vermelho ao Governo. Nas eleições do passado dia 5, a ainda Chefe de Estado foi esmagada pelo tucano Aécio (assim designado por o seu partido, o PSDB, ter essa ave como símbolo) em São Paulo: 25,82% contra 44,22% dos votos. Surpresa só mesmo o facto de o Partido dos Trabalhadores (PT) ter a menor votação no estado em duas décadas de luta com o PSDB. Historicamente conservador, o maior colégio eleitoral do país, onde votam quase 32 milhões de eleitores, foi determinante para afastar Marina Silva, do PSB, da corrida e para garantir o acesso de Aécio à segunda volta. Estava consolidada a polarização e reacesas velhas lutas entre classes sociais opostas no estado que viu nascer os dois partidos que voltam a lutar pela liderança de um país onde os 10% mais ricos concentram 42% da renda. 

'Dilma é uma pistoleira'

Em São Paulo, sexta cidade do mundo com mais bilionários, o anti-petismo, ou seja, o sentimento contra o partido do Governo, está mais forte do que nunca. A inflacção a 6%, a economia a crescer apenas 0,3% no final deste ano, de acordo com o FMI, e as taxas de juro reduzidas a patamares inéditos dão argumentos aos tucanos para pedir um regresso aos tempos de Fernando Henrique Cardoso, que esteve no comando da agora sétima maior economia do mundo entre 1995 e 2003 e que deixou um Plano Real capaz de controlar a inflacção. Nos últimos anos, São Paulo, que se habituara a comandar política e economicamente o país, vai dando sinais de que está impaciente com a distância do poder e que isso afecta o seu orgulho. O contributo do estado para o PIB nacional caiu de 34% para 32% entre 2002 (ano em que Lula foi eleito) e 2011 (ano em que Dilma tomou posse).

Pedro, de 73 anos, quadro do sector financeiro, percorre a avenida que tem o nome do bairro de ténis, calções e t-shirt. De passo acelerado, cumpre o seu jogging diário de final de tarde. Não interrompe por nada a sua corrida e o repórter decide seguir-lhe os passos. Eleitor do PSDB, elogia a geração de emprego e o aumento da capacidade  de compra de uma parte significativa da população nos últimos anos. O pior, diz, é a corrupção, o “lado mais negro do PT”. Ainda assim, olha para a “prisão dos envolvidos no 'mensalão'“ (escândalo de corrupção denunciado em 2005 que envolveu ministros de Lula e quadros do PT) como um “grande passo”. Admite que nunca como agora se sentiu que os tucanos podem regressar ao poder. “Os brasileiros estão envergonhados com tanta corrupção”, declara.

À porta do Colégio Rio Branco, Marina, 48 anos, espera a saída dos seus três filhos da escola onde estudou o piloto de Fórmula 1 Ayrton Sena. Arquitecta de formação, tem-se dedicado nos últimos cinco anos à maternidade, depois do nascimento do último filho. Em casa, tem a ajuda de três empregadas domésticas: uma para limpar a casa, outra para a roupa e para fazer comida e uma ama para ajudar a cuidar das crianças. Entre as principais consequências da política económica seguida pelo PT, destaca a “instabilidade da moeda”. Para quem sempre votou ou vai votar no PSDB, pede-se crescimento económico e uma moeda forte para servir as trocas comerciais, nomeadamente as importações. Admite que está a torcer pela vitória de Aécio porque “o PT aposta nas políticas sociais para benefício eleitoral, não para o bem de todos e para o benefício do país”. Para Marina, “o voto em Dilma e no PT é alimentar os vagabundos, que não querem trabalhar e que ficam em casa a receber apoios. O país não é só Bolsa Família [programa para os brasileiros em extrema pobreza]”. 

Renata, de 57 anos, pede para não ser fotografada. Os holofotes só se acendem para as estrelas que vivem no bairro, brinca. Enfermeira num hospital privado, acusa Dilma Rousseff de ser uma “pistoleira”, na medida em que “roubou votos a Marina Silva com mentiras e difamações”, numa referência ao “marketing agressivo”, segundo a própria candidata derrotada no primeiro turno, construído pela máquina de propaganda do PT. Admite que já votou no partido que está no poder, mas não perdoa o “investimento nos portos em Cuba quando os hospitais públicos estão numa situação miserável e incapaz”. O seu voto agora vai para o PSDB. “Do Aécio só espero que ele não vire piada, como virou Dilma. O Brasil não precisa de um Presidente que só esteja interessado em cair em graça junto dos pobres”.

Churrascão em frente ao shopping 

Esta é a primeira vez desde 1985, ano em que o Brasil saiu da ditadura militar, que nenhum dos candidatos presidenciais nasceu em São Paulo. Aécio Neves, 54 anos, nasceu em Belo Horizonte, no estado de Minas Gerais, que governou entre 2003 e 2010. Mas nem por isso o empate técnico nas sondagens deixa de provocar uma reacção positiva na Bovespa (Bolsa de São Paulo), como esta terça-feira, ou de merecer a confiança dos que cá vivem ou cá trabalham. Aloysio Nunes, candidato a vice de Aécio, é um dos moradores do bairro. É ele quem faz a ponte com a elite económica e financeira de Higienópolis, cada vez mais dependente dos mercados. Recentemente, esteve envolvido numa polémica ao criticar no Twitter a instalação de ciclovias no bairro, uma das bandeiras de Fernando Haddad, prefeito da Cidade, eleito pelo PT, que tem apenas 17% de aprovação e que corre o sério risco de não ser reeleito numa cidade conservadora daqui a dois anos.

“A revolta nos moradores de Higienópolis” por causa das ciclovias, como lhe chamou Nunes, foi criticada nas redes sociais e lembrou polémicas de outros tempos que mais não serviram do que para reafirmar a muralha que os moradores construíram à volta do bairro. Foi assim no início dos anos 2000, contra a construção do Shopping Pateo Higienópolis – hoje lugar de convívio por excelência dos moradores – porque iria desestabilizar o bairro, e em 2010, contra a construção de uma estação do Metropolitano de São Paulo na Avenida Angélica, uma das principais do bairro. Os residentes de Higienópolis argumentavam que a extensão do metro iria atrair “gente diferenciada”, o mesmo é dizer “pobres, toxicodependentes e mendigos”. A empresa metropolitana recuou na abertura da estação, alegando “questões técnicas”, e dias depois era organizado o Churrascão da Gente Diferenciada, que reuniu mil pessoas à porta do centro comercial, em jeito de provocação.

Durante o dia, as ruas do bairro são para os trabalhadores, que vivem na periferia: manobristas (homens que arrumam os carros nas garagens), jardineiros, zeladores, operários e amas de crianças, de idosos e até de animais. Os condomínios são protegidos a gradeamento, videovigilância e seguranças armados.

Sónia, 38 anos, trabalha na casa de um casal de judeus. Está no jardim Buenos Aires, com a filha de um ano e três meses. É o final de um dia de trabalho numa semana que tem seis dias e numa casa que tem mais uma empregada só para cozinhar. Nasceu em Salvador mas fixou-se em São Paulo para tentar melhores condições de vida. Há três anos que trabalha para este casal. Para receber mil reais (329 euros) por mês faz todos os dias duas horas e meia de autocarro. “O melhor deste trabalho é que eles [os patrões] pagam a creche para a menina”, explica. A creche é só para filhos de empregadas. Vai votar em quem? “No Aécio. A única coisa que o PT fez foi o Bolsa Família. Mais nada”.

Mas até em Higienóplis há quem já tenha beneficiado das políticas sociais do PT. Sérgio Silva, 31 anos, é licenciado em Arquitectura graças a uma bolsa, o Pronatec, que recebeu para estudar numa universidade privada. O curso foi pago na totalidade por dinheiro público. “As universidades privadas são caras e as públicas, onde a concorrência é muita, exigem provas de ingresso extremamente difíceis para que possam ser excluídos alunos”, diz. Sérgio, que tem um emprego estável há dois anos, nasceu em Higienópolis mas não vem de uma família aristocrata ou de classe média-alta. Os pais cresceram no Paraná e vieram para São Paulo para servir: o pai é zelador interno de um condomínio e a mãe é manicura. Vivem numa casa do prédio paga pelos patrões.

Foi lá que Sérgio nasceu. Sorri quando se pergunta se Higienópolis é um bairro para privilegiados: “Para as pessoas que vivem aqui o pobre só é pobre porque não quer trabalhar. Sabemos que não é bem assim. Por isso não votam no PT. Para eles, isso seria alimentar os vagabundos”. E acrescenta o outro lado da moeda: “Lula recebeu uma herança de Fernando Henrique Cardoso e distribuiu renda. Mas a inflacção está alta, a moeda está fraca face ao dólar. E isso também tem o seu peso na hora de votar”. 

ricardo.rego@sol.pt