Soraia Chaves: ‘Sei que sou uma privilegiada’

Considerada uma das mulheres mais bonitas de Portugal, depois de anos a trabalhar no cinema e na televisão, Soraia Chaves investe agora no teatro. Está em cena no Teatro Joaquim Benite, em ‘Cais Oeste’, peça de Bernard-Marie Koltès. O futuro está em aberto com duas certezas: vai ser dona de um bordel em ‘Mata Hari’…

Está em cena no Teatro de Almada com a peça 'Cais Oeste', de Bernard-Marie Koltès, encenada por Ivica Buljan. Como surgiu?

Estava a fazer uma viagem pela Patagónia quando recebi um email do Rodrigo Francisco, o director do Teatro de Almada, a propor-me esta personagem, a Monique. Fiquei com muita vontade de fazer a peça. O Koltès é um dramaturgo incrível, com uma escrita crua, cínica, e uma visão nada romântica da sociedade. E estava com vontade de voltar a fazer teatro.

É a segunda peça que faz. Estreou-se em 'Apenas Jardim', de Hugo Mestre Amaro, em 2012.

Na altura estava a gravar o Dancing Days. Depois da novela decidi parar por uns tempos e fui viajar, pensar no que queria fazer. E percebi que queria voltar a fazer teatro. Quando recebi o convite, pensei: é mesmo o momento ideal. Era exactamente o que eu queria fazer antes de voltar a fazer televisão. Já conhecia o autor, o Teatro de Almada tem uma enorme reputação, não havia dúvidas.

Interpreta Monique, uma mulher rica que vai parar a um cais habitado por marginais.

É uma sobrevivente. Aparece naquele lugar inóspito e ao longo da peça o seu objectivo é sair dali. Há a urgência, o medo e a vontade de ir para o mundo civilizado. O espaço em que aquelas personagens se encontram fica entre o mundo civilizado e o mundo selvagem. Ninguém quer estar ali. Mas há uma grande força nela. Quando se encontra com as outras personagens não tem medo delas. Enfrenta-as e luta pelo seu lugar. A peça é uma reflexão sobre a nossa sociedade, em que os que têm muito dinheiro estão de um lado, onde os sonhos são possíveis, onde há um futuro e condições para se viver bem e, do outro, estão os que ficam à margem, que não têm sequer direito a sonhar.

A peça esteve em Julho em cena no Festival de Teatro de Almada. Como correram as duas apresentações?

A perspectiva do actor é sempre subjectiva. E eu estava bastante nervosa. Mas acho que correu bem. O público ficou em choque com a violência do texto e da encenação, o que era um dos objectivos do Ivica. Ele sempre nos incentivou a testarmos os nossos limites, a não ter medo de exibir a violência e o lado animalesco do ser humano.

Como é subir ao palco de Almada, que é enorme?

Nos ensaios senti medo: Uau! Esta sala é enorme, como vou conseguir fazer isto? Mas senti-me mais confortável neste espaço por estar mais distante do público do que na primeira peça que fiz, no Teatro do Bairro, onde estava colada à audiência. Aqui não sinto o público. É como se não existisse.

Como foi trabalhar com um encenador estrangeiro?

É uma ideia estranha ser encenada por alguém que não fala a nossa língua. Mas foi fácil porque ele é muito expressivo. Quer que o corpo conte aquilo que estamos a sentir. A sua preocupação vai mais para o corpo do que para a palavra. Quer sentir os corpos vivos. A direcção dele é muito carnal, animalesca.

Estudou teatro antes de o fazer?

Sim, estive em Madrid, numa escola de teatro, o estúdio Juan Carlos Corazza. Estive um ano a fazer workshops, depois fiz dois anos de curso. Comecei a trabalhar sem ter nenhuma formação, comecei pelo cinema, depois passei para televisão. Por isso, tive vontade de ir para uma escola, de aprender. Era um curso de interpretação e estudávamos, sobretudo, peças de teatro.

Já se imaginava em palco?

Não, pensava em cinema e televisão. O palco sempre me assustou, a forma de comunicar é muito mais aberta do que no cinema. O cinema é mais íntimo, mais subtil. Temos uma câmara colada à cara, podemos contar muita coisa apenas com um olhar. No teatro não. E não há cortes. Tinha sonhos em que estou prestes a começar a peça e não me lembro do texto.

Isso não acontece na televisão…

A televisão é outra coisa, exige uma maior ginástica do actor, exige que os instintos estejam muito presentes, para nos adaptarmos rapidamente a uma nova situação. É um desafio incrível. Os actores que conseguem fazer isso bem em televisão são extraordinários.

Gostaria de continuar a trabalhar nos três meios?

Sim. Como espectadora sempre fui mais dedicada ao cinema do que ao teatro e, por isso, sempre foi o que quis fazer. Mas temos uma indústria pequena e não posso viver só dos trabalhos que de vez em quando surgem no cinema. Ficaria estagnada. Foi também por isso que quis experimentar o teatro, por não querer estar parada, querer evoluir e trabalhar. E é um mundo mágico, onde posso aprender e divertir-me. Já a televisão é óptima para treinar a ginástica e a flexibilidade das emoções.

Tem tido vários períodos de ausência. Porquê?

Às vezes preciso de parar. Não sinto a pressão de estar sempre activa. Se há qualquer coisa que me falta ou que não me está a satisfazer, ou se não sei para onde ir, paro. Gosto de esperar pelo projecto certo, de reflectir e perceber por onde quero ir. Apavora-me sentir que entrei numa engrenagem de que não consigo sair. Prefiro parar e perceber o que quero fazer. Tenho necessidade de conhecer coisas novas, de ter novos desafios, de não me sentir presa numa só caixa. É isso que me faz ter calma e permitir-me, sem culpa, parar e esperar. E há outras coisas que posso fazer, como viajar e ler.

Viaja sozinha?

Não, só se for no contexto de trabalho ou estudo. Quando vou de mochila às costas à descoberta tento sempre ter companhia. Já tentei ir sozinha e não gostei.

E vai por longas temporadas?

Sim. Nós, actores, trabalhamos por projecto. Temos imenso tempo livre e o privilégio de o poder organizar. Gosto de viagens que me permitem explorar, fazer as coisas com calma.

A distância ajuda-a a perceber o que quer para a sua carreira?

Sem dúvida, é fundamental para me distanciar da vida que tenho e ganhar uma nova perspectiva. Conhecer outras realidades inspira-me e ajuda-me a reflectir sobre o meu mundo.

Há algum lugar a que volte uma e outra vez ou prefere diversificar?

Diversificar. Desde cedo que tenho vontade de conhecer o mundo todo. Por isso sempre que viajo tento ir para um continente ou uma zona diferente.

Algum lugar preferido?

Gostei de todos. Estive no Sudeste Asiático, América do Sul, Índico, África, cada local com as suas características. Como gosto da descoberta não poderia escolher um. Quando voltar a viajar vou tentar ir a outro sítio.

Esteve agora em pausa?

Sim. Fiz 'As Linhas de Wellington' em 2012 e este ano estive a fazer um filme brasileiro em Moscovo, chamado 'Vermelho Russo'. Há cinco anos estive em Moscovo a tirar um curso de teatro. Tinha um fascínio pela literatura e teatro russo e falaram-me de um grupo de São Paulo que organizava, todos os anos, uma viagem a Moscovo na qual, durante um mês, se está no Conservatório de Teatro de Moscovo a estudar o teatro russo. O grupo era brasileiro, eu era a única portuguesa. Debruçámo-nos sobre o Tchékhov. Cada actor escolheu um monólogo. Na altura fiz de Nina, de 'A Gaivota'. Agora, para o filme, já fiz de Arkadina, deixei de ser a menina e passei a ser a mulher. O filme baseia-se na nossa experiência. Uma das actrizes brasileiras escreveu um diário sobre a experiência de estar na Rússia a estudar teatro. E o realizador, Charlie Brown, resolveu fazer um filme baseado nesse diário.

Antes fez 'As Linhas de Wellington'. Como correu?

Muito bem. É ambicioso fazer um filme de guerra e uma reprodução de época quando não há meios financeiros. Quando chegava aos cenários ficava fascinada com o que a equipa do Paulo Branco montou, a reprodução da época, os detalhes do guarda-roupa, o ambiente que criaram. Havia alturas em que estavam lá 500 figurantes, com tudo perfeitinho, cada figurante muito bem caracterizado. Gosto de fazer filmes de época. Vestimos a roupa, pomos a maquilhagem entramos no cenário e, de repente, sentimo-nos noutra época.

O filme ia ser realizado por Raúl Ruiz, que morreu antes de as gravações começarem. Chegou a conhecê-lo?

Sim, o Paulo Branco organizou conversas com alguns actores para o Raúl Ruiz os conhecer. Estive com ele uma vez, num lobby de hotel, numa conversa breve. Tinha uma grande expectativa de trabalhar com ele, os actores que tinham feito os 'Mistérios de Lisboa' contavam coisas incríveis sobre o seu trabalho. Falavam dele com uma admiração muito especial.

Estrearam no Festival de Veneza. Como foi essa experiência?

Fantástica. Foi o elenco inteiro, divertimo-nos imenso. Aproveitámos bem aquele momento, que eu tinha a sensação de ser único na minha vida: estrear um filme em Veneza. Há toda uma magia associada àquele festival. Foi muito bonito poder estar lá a representar o nosso cinema e estarmos todos juntos.

Fez 'O Crime do Padre Amaro' em 2005. Antes trabalhava como manequim. Como tem sido este percurso?

Inicialmente fui levada pelos acontecimentos. O filme teve um sucesso surpreendente e não tive controlo sobre o que aconteceu a seguir. Foi uma fase muito interessante. Mas depois senti-me a ser levada por essa corrente e tive que parar. Gosto de ter controlo sobre o que faço. Vou percorrendo o meu caminho à medida das necessidades que sinto: formação, televisão, agora o teatro. Gosto de ir mudando, aprendendo, evoluindo.

Já não trabalha como modelo?

Parei pouco depois de ter começado a trabalhar como actriz. Tenho feito alguma publicidade mas usando o meu nome. Não era o que queria fazer. Deixei a moda com muita facilidade.

Costuma interpretar mulheres sexys. É preciso lutar contra um certo tipo de papéis?

Sim. Há tendência de colocar o actor numa caixa, de o rotular. Conseguir ser convidada para fazer outro tipo de papéis é uma luta e leva o seu tempo. Ainda estou aí. Mas é natural e não há dedos a apontar a ninguém.

Já recusou papéis para fugir ao rótulo de mulher bonita?

Já recusei papéis por sentir que a personagem era só a mulher sedutora, a boneca, não representando qualquer desafio para mim. Mas se fosse um guião lindíssimo com a proposta de interpretar uma prostituta, como no 'Call Girl', faria. Aliás, vou agora fazer uma pequena participação numa série russa, que está a ser produzida cá, da 'Mata Hari'. Fui fazer um casting para uma mulher de 30 anos, conservadora, pesada. Imaginei uma mulher azeda, frustrada, um pouco frígida. Quando cheguei o realizador, que não me conhecia, olhou para mim e disse: 'Ah, eu tenho outra personagem para ti'. Depois recebi o telefonema da Patrícia Vasconcelos a dizer: 'Soraia, ficaste, mas com outro papel'. Vou interpretar a madame de um bordel. É divertido. Uma mulher que em 1900 gere um bordel deve ter uma força enorme. Apesar de ser uma prostituta e de se enquadrar na forma como muitas vezes me olham quando me escolhem papéis, há sempre uma forma de encontrar qualquer coisa de novo se o projecto for interessante.

Tem mais planos?

Não. Gostava de voltar a fazer teatro antes de fazer televisão. Se não surgir nenhum convite gostava de juntar uma equipa e produzir, para poder ganhar consistência nesta experiência que tenho tido nos palcos.

Há alguma peça que gostasse particularmente de fazer?

Não. Ainda estou no processo de fazer leituras e perceber o que poderia ser interessante.

Não está preocupada com a falta de projectos?

Nada. Aproveito para fazer estas coisas, ler e ter ideias. Gosto da sensação de deixar o futuro em aberto. Não gosto de sentir que está tudo programado, gosto desta liberdade.

Não gostaria de ter agora um contrato de exclusividade, como já teve com a SIC?

Não. Gosto de ter tempo. É para mim um privilégio poder parar. Por trabalhar em televisão e fazer publicidade consigo uma maior estabilidade financeira que mo permite. Há muitos actores que trabalham só em teatro e que ganham miseravelmente. A situação do actor em Portugal não é um mar de rosas. Sei que sou uma privilegiada e gosto de aproveitar esse privilégio da melhor forma. 

rita.s.freire@sol.pt