Um vírus em ‘ebolição’

O ébola ultrapassou pela primeira vez as fronteiras africanas e deixa alarmadas as autoridades de saúde, que vêem casos de contágio entre portas. Mas o que se sabe, verdadeiramente, sobre o vírus? Jaime Nina, do Instituto de Higiene e Medicina Tropical, explica os caminhos do vírus, a sua história e alguns dos seus ‘caprichos’.  

Um vírus em ‘ebolição’

No momento em que falamos, já há um segundo caso confirmado de contágio nos EUA. Temos protocolos, equipamentos sofisticados, etc. O que falhou?

Há um inquérito ainda em curso para saber como essa enfermeira foi infectada. De qualquer forma estive a ouvir o comunicado do director do Centro para o Controlo de Doenças dos EUA (CDC) e ele diz que aparentemente ela ter-se-á infectado a despir o fato. Despir o fato não é nada fácil. É facílimo uma pessoa, sem querer, pôr as mãos num sítio que está infectado. 

E pode ser qualquer sítio exterior ao corpo…

O vírus fica preso ao fato. Os Médicos Sem Fronteiras, que indiscutivelmente são as pessoas, de longe, com mais experiência nisto, antes de as pessoas despirem o fato, passam-lhes com uma mangueira com uma espécie de sabão com desinfectante pelo corpo todo, para lavar o fato. Assim é muito mais seguro despi-lo. Acho que os europeus e os americanos deviam aprender com a experiência africana. 

Mas imaginemos que vamos a um restaurante, estamos com uma pessoa infectada e bebemos do copo dela por engano, por exemplo. Corremos riscos?

Uma pessoa que está a fazer isso é uma pessoa que se sente saudável. Ou seja, está no período de incubação e não é contagiosa. Só é contagiosa quando começa a sentir-se doente, com febre alta, com vómitos, com diarreia, etc. Pode haver contactos indirectos, pelo menos em teoria, com essa pessoa. Em Monróvia (capital da Libéria), por exemplo, neste momento a lista de espera para internamentos numa unidade de ébola é de três dias. Os doentes que se sentem a morrer andam de táxi pela cidade toda – e é uma cidade grande, tem cerca de um milhão de pessoas – a tentar encontrar um sítio onde sejam internados. Não têm a noção de que está tudo cheio, não é um país onde se possa ir ao computador ver qual é o sítio que tem vagas. E os transportes africanos têm lotação de 12 lugares e podem ter 20 pessoas lá dentro… Pelo menos teoricamente pode haver contacto. 

Há exemplos concretos?

Temos um exemplo flagrante, que foi um liberiano, um alto funcionário de uma instituição financeira que furou completamente todas as medidas de precaução. Ele tinha ido ao funeral da irmã, tinha estado com ela, aliás tinha sido ele a interná-la – andou com ela ao colo – devia ficar de quarentena e disse que não queria. Na altura o aeroporto de Monróvia já tinha um protocolo para fazer o rastreio dos viajantes antes de embarcarem para os aviões, só que este senhor utilizou os seus 'galões', entrou pela sala VIP e ninguém lhe perguntou nada. 

E foi para os EUA?

Não, primeiro foi para Acra, a capital do Gana, e depois foi para Lagos (Nigéria). O que foi pior ainda – ele já estava muito doente, com febre alta e sentia-se muito mal, e quando chegou à Nigéria foi para um hospital privado onde não disse que tinha vindo da Libéria. E foi visto, foi examinado pela enfermeira que estava a fazer a triagem, tiraram-lhe sangue para análises, etc. O que é importante para a transmissão? Depois de se saber deste senhor, que acabou por morrer de ébola, fez-se o rastreio de todas as pessoas que tinham tido contacto com ele: os funcionários dos aeroportos de Monróvia, Acra e Lagos, os passageiros dos dois voos, nomeadamente os que tinham estado sentados ao lado dele, o pessoal de cabina dos dois voos, os taxistas que o tinham levado de um lado para o outro. Ninguém estava infectado. A primeira pessoa que ficou infectada foi a enfermeira que o viu, em Lagos. Ou seja, teve com ele um contacto muito mais próximo do que qualquer das outras pessoas.

Diz-se que o ébola é de contágio mais difícil do que outras doenças virais, como a gripe, que se transmite por via aérea. Se é mais difícil, por que a disseminação é tão rápida?

O problema aí não está no vírus, está na definição da palavra 'difícil'. Tem de se dizer como se transmite. Se virmos uma imagem do vírus – e ela está em muitos jornais e sites, até na Wikipedia – ele tem mais ou menos o feitio de um cordel, fininho e comprido, muito flexível. Ele tem uma membrana e a sua camada exterior é coberta por uma glicoproteína, ou seja, por açúcares. Ora, o açúcar molhado é pegajoso. É um vírus que se agarra a tudo. Daí a facilidade com que ele se transmite. Num sítio qualquer, onde a pessoa deixou uma gotícula de sangue, de vómito, de diarreia, e onde outra pessoa toque sem querer, ele fica agarrado até depois entrar no organismo e provocar a infecção. Por outro lado, essa mesma característica torna-o de muito difícil transmissão por via aérea. Se ele fica agarrado, não voa, não é levado pelo vento.

E como são os outros vírus?

Se virmos ao microscópio um rinovírus [vírus da constipação], por exemplo, é uma espécie de bolinha de uma proteína que não se agarra a nada. Ele pode rolar numa superfície, mas não se agarra. A mais pequena brisa lança-o no ar e uma pessoa, quando respira, inspira-o, o que nunca acontece com o ébola. 

E como se pode explicar como Teresa Romero, a auxiliar de enfermagem espanhola, contraiu o vírus em Madrid? Ela alega que terá passado com uma luva do fato de protecção na cara.

É muito plausível.

Mas o vírus pode entrar pela cara?

Não. Uma auxiliar de enfermagem despe o fato, vai lavar-se, está sossegada, leva a mão à cara, penteia-se, ajusta a maquilhagem… e depois leva a mão à boca, coça os olhos, entra num sítio em que há uma solução de continuidade da pele ou de uma mucosa. E todos nós temos centenas de soluções de continuidade – desde pêlos arrancados a um golpe a fazer a barba, a cortar as unhas, um golpe com o dedo do pé numa cadeira… 

Há sempre uma pequena brecha no corpo…

Uma pequena brecha em que a pele não está intacta. Tanto quanto se sabe, o vírus não é capaz de atravessar uma pele intacta. Mas nós temos tantos orifícios para além dos chamados naturais, que até o vírus mais incompetente consegue entrar. 

Por outro lado, a OMS fala também da transmissão por animais, os macacos. E dos morcegos. E entretanto abateram o cão da auxiliar de enfermagem espanhola. 

Isso, por um lado, como amante dos animais, horroriza-me. E por outro lado, como cientista, também me horroriza. Não se sabe nada sobre o que o vírus faz em carnívoros. Têm sido encontrados imensos macacos mortos na floresta por surtos de ébola e isso pode ser grave. Houve dois parques nacionais no Congo-Brazzaville que perderam a quase totalidade dos seus gorilas devido a esses surtos. Têm sido encontrados outros animais, antílopes, roedores. 

Seria interessante saber se o cão era resistente ao vírus, por exemplo?

Na minha opinião o abate do cão foi um erro. Mas às vezes, surtos destes, que têm um grande alarido e uma grande cobertura mediática, tornam os políticos nervosos e muitas vezes eles interferem em questões técnicas e depois dá asneira. Se calhar foi isso que aconteceu, não sei. Não estou a ver nenhum motivo para matar o cão, antes pelo contrário, foi uma oportunidade perdida para saber se o vírus consegue infectar e o que provoca no cão. Ele devia ter ficado em isolamento para se poder ver o que acontecia. Podia não ter acontecido nada, o cão poderia ser resistente. 

Mas estamos em cidades grandes e o pânico é muito…

Sim, mas voltando à questão dos animais, há uma longa lista de mamíferos que se sabe serem infectados pelo vírus ébola ou pelo Marburgo, que é um primo direito. O espectro da doença é variável, mas na maioria dos casos, provoca uma doença grave. Há pelo menos uma estirpe do vírus ébola, o Reston, que pode provocar uma infecção assintomática quer em porcos quer em seres humanos. Foi descoberto nas Filipinas, mas sabe-se que existe também na China e no Vietname. E também em África. Aparentemente, há casos de criadores numa estação de criação de macacos para investigação nas Filipinas que têm anticorpos contra o vírus Reston e nunca estiveram doentes, o que é muito curioso e seria muito interessante estudar.

Ainda há muito desconhecimento sobre o ébola. 

Foi descoberto já há 36 anos. Fazia um surto num sítio qualquer, habitualmente perdido no meio da floresta do Congo, era controlado e o vírus desaparecia durante meses, anos, às vezes décadas. E depois aparecia noutro sítio completamente diferente. E a grande pergunta era: onde está o vírus durante este intervalo? 

E onde estava?

Foram investigados milhares de mamíferos, para ver se algum seria um reservatório animal. Isto é um padrão da chamada zoonose, ou seja, as infecções que têm reservatório animal não humano e que esporadicamente passam do reservatório não humano para o humano e provocam uma epidemia. Um exemplo flagrante é a peste negra da Idade Média.

Trazida pelos ratos…

Os ratos eram o reservatório. Procurou-se também numa quantidade enorme de insectos, porque muitas zoonoses têm os insectos ou os artrópodes (mosquitos, no primeiro caso, carraças no segundo, por exemplo) como hospedeiro intermediário e nunca se encontrou. Só há menos de dez anos é que uma equipa inicial do Instituto Pasteur (França) – depois houve outras equipas, do CDC – que pensaram nos morcegos e começaram a investigá-los. E de facto encontraram. Os morcegos são o reservatório primário do vírus ébola e do Marburgo também. São de espécies diferentes, da floresta tropical. No caso do ébola, são morcegos de floresta tropical cerrada, húmida, chuvosa todo o ano. E no caso do Marburgo, são morcegos de floresta aberta, em que há estações bem marcadas de seca e de chuvas. Uma coisa curiosa é que os morcegos têm o vírus ébola, aparentemente ficam infectados para a vida, durante o resto da vida excretam o vírus, quer na urina, quer nas fezes, mas não têm a doença. São perfeitamente saudáveis.

Eles contagiam, então, os macacos e daí é que o vírus chega aos seres humanos.

Diria que a maior probabilidade é o macaco, porque durante o dia, os morcegos dormem nas árvores ou têm uma gruta nas proximidades. Se um macaco conseguir apanhar um morcego – e há muitos macacos omnívoros, para os quais um morcego seria um óptimo pitéu -, caça-o e se o morcego estiver infectado, o macaco também fica. Se formos, por exemplo, a Luanda, nos mercados populares encontramos carne de macaco de várias espécies à venda. E quem diz Luanda, diz quase toda a África. 

Isso põe em risco não só a África Ocidental como toda a África Subsariana?

Não. Depende das zonas onde existem estes morcegos que são reservatório. Os morcegos do ébola são de zona de floresta. Este foi o primeiro surto fora da Bacia do Congo e zonas anexas, o que também explica em parte por que é que ele se tornou tão grande. No Congo sabem o que hão-de fazer, já têm uma longa experiência. Estes países foram apanhados completamente de surpresa. Se formos ao site da OMS, vemos que paralelamente ao surto da África Ocidental, que é aquele gigantesco, há um pequeno surto na Bacia do Congo, no norte da RD do Congo, que neste momento está na parte final. Há uma semana e meia que não tem tido mais nenhum caso novo. O surto foi muito bem estudado e sabe-se qual foi o primeiro caso, e na África Ocidental não se sabe. 

E qual foi?

Foi o da esposa de um caçador. Ele tinha entrado na floresta, tinha morto um animal, levou-o para casa. E a esposa tirou a pele, os ossos, as vísceras, cortou-o aos bocados e pô-lo na panela. Uma semana depois, estava com ébola. Os segundos casos foram os filhos, foi a sogra, foi o pessoal do centro de saúde onde ela se dirigiu quando se sentiu doente, cheia de febre, vómitos e diarreia. Neste caso conseguiu-se apanhar o início do surto. Nas cadeias de transmissão da África Ocidental, quando se vai ver quem está infectado e se consegue falar com a pessoa – às vezes morrem antes de se conseguir fazer um interrogatório a sério – descobre-se que houve sempre contactos com outras pessoas infectadas. Não há nenhum caso documentado de transmissão por via aérea, por maçanetas de portas, por objectos. É sempre por contacto pessoal. Daí o facto de tantos profissionais de saúde estarem infectados. Para já, são aqueles que são procurados pelas pessoas que se sentem doentes. E depois é suposto o médico ver o doente, palpar a garganta, a enfermeira tirar-lhe sangue para análises, etc., tudo manobras em que facilmente se contagiam. Principalmente em países onde não há luvas, não há batas, não há máscaras, não há nada disso. 

Os medicamentos experimentais estão numa fase que nos pode dar mais esperança?

Há um detalhe que talvez tenha importância. O vírus ébola, como aliás o Marburgo, independentemente de provocarem pequenos surtos na África profunda desde há muitos anos, desde sempre foram incluídos na lista de possíveis agentes de guerra biológica. E como tal, tem havido um estudo intensivo que se sabe da parte dos americanos, pensa-se provavelmente dos russos, mas eles não falam sobre isso, possivelmente de outros países, sobre a utilização possível. Quando dizemos que de repente apareceram uma data de medicamentos, esses medicamentos já estavam a ser testados pelos militares. O ébola pode ser tratado com soro polivalente, que é uma técnica usada noutras doenças (difteria, tétano, hepatite B…) há mais de um século. Se formos pela praia e enfiarmos um prego ferrugento num pé, vamos à urgência e somos tratados com uma seroterapia antitétano. É exactamente aquilo – com as devidas diferenças, de fabricante, por exemplo – que o primeiro doente americano levou, o ZMapp. É um cocktail de anticorpos anti-ébola. Os outros medicamentos que estão a ser ensaiados, como por exemplo aquele que está a ser dado à auxiliar espanhola, já estava a ser usado contra o vírus da gripe. Se será eficaz ou não para o vírus ébola, é um grande ponto de interrogação. Mas tem a vantagem de estar disponível nas farmácias. 

ricardo.nabais@sol.pt