Entre viciados em crack e sem-abrigo, Lula pediu um ‘show de democracia’

Dilma Rousseff passou hoje o dia no Rio de Janeiro a treinar para o debate de logo à noite na TV Globo. É o último frente-a-frente entre a candidata do Partido dos Trabalhadores (PT) e Aécio Neves, do Partido Socialista Brasileiro (PSDB), antes das eleições deste domingo. A ainda Presidente do Brasil está embalada pelos…

Lula da Silva foi uma figura omnipresente durante a campanha. Quando Dilma andava com a sua caravana por outros estados do país, sobretudo pelo Nordeste, onde a vitória conseguida a 5 de Outubro é fundamental para a reeleição, o ex-Presidente ficou por São Paulo, o maior colégio eleitoral do país onde votam 32 milhões de eleitores (22,4% do total de eleitores em todo o país) a apelar ao voto e a tentar inverter o que parecia ser a tendência ascendente da candidatura de Aécio Neves. São Paulo ainda é a maior dor de cabeça para o PT, já que a candidata do partido que está há 12 anos no poder foi esmagada por Aécio na primeira volta das eleições presidenciais (25,82% dos votos contra 44,22%), a 5 de Outubro. 

Passava pouco mais de uma hora e meia da hora marcada (11 horas), quando Lula chega à Praça do Patriarca bem no centro da capital paulista. A moldura humana era composta por populares ligados aos sindicatos e aos partidos da coligação ‘Com a Força do Povo’, uma aliança de novo partidos políticos, entre eles o Partido Comunista do Brasil. O jingle da campanha, ‘Coração Valente’, repetiu vezes sem conta: ora em versão sertaneja (música do interior do país) ou em versão funk (música da favela). Todos vestiam camisolas vermelhas, a cor do PT, e colavam ao peito autocolantes com o rosto de Dilma. O dia despertou com temperaturas altas, mas nem por isso os dilmistas que pedem mudança deixaram de ir para a rua para apoiar a única candidatura a quem confiam os próximos quatro anos. Por enquanto há água para combater o calor. 

Hotel virou casa dos sem-abrigo

Na Praça do Patricarca, ao lado do edifício Matarazzo, sede da Prefeitura (Câmara Municipal), onde Fernando Haddad, o prefeito eleito pelo PT, tenta combater o sentimento anti-PT num estado conservador, desfilavam os excluídos da sociedade brasileira: sem-abrigo, toxicodependentes viciados em crack, prostitutas e até o Movimento Sem Tecto do Centro, que fez questão de entrar na onda de apoio a candidatura petista. Aliás, ao lado da Prefeitura, o extinto Othon Palace Hotel, que em tempos foi um dos mais famosos hotéis do centro velho de São Paulo, é hoje ocupado pelo movimento LMD (Luta Moradia Digna). Ao todo, diz-nos um dos responsáveis do movimento, vivem clandestinamente no edifício 200 famílias (500 pessoas), pelos 25 pisos do edifício. “Só não usamos o último porque não tem como chegar lá, não há elevador”, diz-nos o mesmo responsável. 

Há sete meses que aqueles cidadãos, na maioria brasileiros, embora o hotel seja morada para alguns haitianos que entram no Brasil através do Amazonas, fazem daquele edifício a sua casa. “A Dilma disse que o Brasil seria a mãe de todos, deixou entrar os imigrantes. Mas como é que ela faz isso se não cuida dos brasileiros”, questiona a responsável. A polícia e as autoridades, por enquanto, não têm apertado o cerco. Só há pouco tempo entrou lá a polícia e o Instituto de Medicina Legal para recolher o corpo de um residente que se suicidou atirando-se do 25º andar “porque a namorada acabou com ele”. As informações sobre o alojamento são prestadas com cautela. A relação com os jornalistas deve ser autorizada pelo advogado que trabalha para o LMD. Fotografias do interior do hotel, nem pensar. 

Cada residente paga mensalmente 80 reais para dormir ali. “Para pagar advogado, portaria 24 horas, manutenção e coordenação”. A água e a luz são tiradas clandestinamente de outros prédios. Enquanto o SOL falava com o responsável, o proprietário de um estabelecimento vizinho, do sector da restauração, entrava na recepção para pedir os comprovativos de pagamento de água e luz. Isto, soube-se depois, porque estava disposto a dar emprego a dois guineenses que ocupam o hotel mas, para isso, era preciso fazer prova de que pagam as contas e da legalidade do alojamento. Mesmo tratando-se de um alojamento ilegal. 

A lotação está esgotada mas todos os dias dezenas de pessoas tentam um lugar na casa que estará entregue ao LMD até que as autoridades o queiram. “Um quarto no centro da cidade custa 800 reais. Uma pessoa que ganha isso por mês como pode pagar um quarto? Só no centro de São Paulo existem 700 prédios desocupados. 40 estão ocupados por movimentos como o nosso. Só estamos aqui à espera de reintegração. O governo não nos pode tirar daqui sem nos dar uma casa. São Paulo cresceu muito e não estava preparado. Há miúdas de 17 anos aqui que já são mães. Aos 40 e tal anos serão avós. São três gerações. É muita gente. Explique isso tudo à Dilma, a ver se ela resolve a nossa situação”, desafia-nos o responsável. 

Desafios até 2018 

Cá fora, a festa continua. Já o carro que transportava Lula entre a multidão avançava em direcção à Praça da Sé. Flávia e Taiara, 27 e 28 anos, respectivamente, estiveram nas manifestações de Junho do ano passado em luta por uma melhor educação e melhor saúde. Na altura, pedia-se educação e saúde “padrão FIFA”, numa referência aos gastos com a organização do Mundial de Futebol deste ano. Vão votar PT e Dilma Rousseff porque acreditam que votar em Aécio Neves seria pactuar com uma “política higienista”, ou seja, “uma política que irá afastar ainda mais os marginais”. Acusam a candidata à reeleição de falhado no “diálogo com os movimentos sociais” e de ter “cedido em alguns dossiers”, nomeadamente aqueles que podiam e deveria estar ao serviço de uma sociedade menos desigual num país historicamente desigual.  

O desafio para os próximos quatro anos, se a candidata for eleita, é precisamente “definir e trabalhar sobre uma agenda dos direitos humanos”, sinalizam as duas jovens. “O que se vê aqui no centro da cidade é a prova de que não há uma agenda nacional para os direitos humanos. Estas pessoas estavam na cracolância e acabaram por vir para aqui depois do governo do Estado (nas mãos do PSDB de Geraldo Alckimim), tentarem uma limpeza à força, com carga policial que foi uma vergonha para nós brasileiros. Mas não lhe derem uma alternativa e eles acabaram por se deslocar no terreno. O problema continua”, lamentam. 

Ricardo Zarattini está entre a multidão. É um conhecido resistente da ditadura militar brasileira que foi torturado, exilado e preso político, tal como Dilma Rousseff. Aos 79 anos, e com alguma dificuldade de mobilidade, não deixou de ir apoiar Dilma Rousseff, representada esta manhã na caminhada em São Paulo por Lula da Silva. Optimista confesso, diz-nos que Dilma representa “a liberdade”. Quando se pergunta sobre a situação económica do país (moeda fraca face ao dólar e inflação alta), Zarattini alerta para a “curva descendente do capitalismo”. Uma possível vitória de Aécio Neves, diz, “seria submeter o Brasil ao capital financeiro e seria perder a soberania, a democracia e o princípio de um país socialmente justo”. 

Na Praça de Sé, nem os anjos e santos conseguem afastar amparar as centenas de brasileiros que vivem pelas ruas, espalhados pelo largo. A maioria dependente de crack. À noite, diz-nos um polícia de uma unidade ali montada, é perigoso circular naquela zona da cidade. É por voltas 16 horas, quando os embargadores e demais profissionais do Tribunal de Justiça e de outros serviços públicos do estado regressam a casa, que os habitantes da cracolandia se deslocam para ali. “Esse é o pior cartão postal da cidade. Que se mantém. Porque cada governo tem uma política diferente: uma faz uma coisa, o outro vem e faz outra diferente”, desabafa o profissional da segurança pública. 

O centro da praça está à pinha. De costas para a Sé, um palco montado em cima de um camião TIR serve de palco para Lula e a sua comitiva. Mas o ex-Presidente não discursa para respeitar a lei eleitoral, que proíbe discursos e apelos ao voto a partir de hoje. Ainda assim, Lula, o profissional dos comícios – uma experiência adquirida quando ainda era o líder do Sindicato dos Metalúrgicos do Grande ABC, na cintura de São Paulo – pega no microfone e desafia as centenas de apoiantes: “Vamos dar mais um show de democracia no domingo”, atirou. Foi êxtase para quem tem em Lula um guia. Estava cumprido o objectivo: sem discursos, o que importava era mobilizar a população para o voto na sua sucessora no domingo. 

ricardo.rego@sol.pt