A pesada herança europeia

Esta foi uma semana de passagem de testemunho na Comissão Europeia: Durão Barroso despediu-se e Jean-Claude Juncker obteve uma votação confortável no Parlamento Europeu para a sua equipa. Apesar das expectativas num novo rumo, com menos austeridade e mais crescimento para a Europa – o que Juncker procurou enfatizar no seu discurso perante os eurodeputados…

Os resultados das últimas eleições europeias mostraram até onde chegou o desencanto com um projecto de União que parecia tão irresistível e exaltante aos olhos das gerações do pós-Guerra. Em vez disso, deparamos com um clima de desconfiança, crispação e hostilidade que favoreceu o avanço dos partidos anti-europeus, nacionalistas e xenófobos, ameaçando arrastar nessa onda não só uma parte crescente da direita tradicional mas também as esquerdas arcaicas ou sem rumo. E há, ao mesmo tempo, o bloqueio germânico – e dos seus aliados – a qualquer mudança na doutrina de integrismo orçamental, mesmo quando estão inteiramente à vista os efeitos perversos e contraproducentes de tal doutrina.  

Inverter essa tendência representa um verdadeiro trabalho de Hércules que nenhuma Comissão Europeia anterior foi chamada a assumir, ainda que à frente dela estivesse uma figura verdadeiramente mobilizadora como Jacques Delors (nos anos tão promissores quão quiméricos de 1985-95). Não é esse o caso, infelizmente, de Juncker, europeísta convicto mas enredado nos velhos arranjos eurocráticos – como aqueles a que teve, aliás, de submeter-se para conseguir formar o elenco da nova Comissão. 

A luz verde que recebeu do Parlamento Europeu, depois de quase um mês de peripécias, traduz a necessidade de uma esperança para enfrentar a tempestade. E Juncker parece consciente dos desafios que o esperam, exibindo a vontade de levar a cabo uma viragem no rumo da União Europeia (UE). Daí a sua proposta de combate à “austeridade excessiva” e em defesa da “flexibilidade orçamental”, isto é, contra os dois dogmas germânicos que têm asfixiado a Europa e ameaçam conduzi-la ao precipício da recessão e da deflação (para onde já caminha, como temos visto, a própria Alemanha). 

Mas se Juncker não é Delors e se a sua Comissão é fruto de um laborioso compromisso, põe-se a questão de saber como conseguirão remar contra a maré em tempo útil. Ou seja, antes que o eurocepticismo alastre até se tornar uma doença incurável e antes que seja preciso a Alemanha mergulhar no pântano, onde vegetam a maioria dos países europeus, para o Governo de Berlim despertar, enfim, para a realidade. 

Os sinais de convergência de posições entre Juncker e Mario Draghi, presidente do BCE, favorecem, sem dúvida, uma viragem europeia, mas, mesmo resistindo à tentação funesta do eurocepticismo, as dúvidas tendem a ser maiores do que as esperanças. Até porque os seus discursos a favor da mudança permanecem aprisionados no mantra das chamadas ‘reformas estruturais’ – que é outra forma de dizer que o crescimento e o emprego estão reféns do sacrifício dos direitos sociais.

Se Juncker não suscita expectativas luminosas, Durão Barroso está muito longe de deixar saudades. E as suas palavras de despedida mostram bem que o presidente português da Comissão cessante persiste na negação da realidade: pavoneando-se com a sua “boa folha de serviço”, ele fala da crise europeia no passado, como se ela tivesse sido definitivamente superada ou não ameaçasse mesmo agravar-se de novo nos próximos tempos, apesar dos sinais de acalmia temporária que se seguiram aos temores de colapso do euro e da própria UE.

Evidentemente, Barroso está longe de ser o protagonista das desventuras da Europa. Aliás, o que lhe podemos sobretudo censurar é de ter abdicado de qualquer espécie de protagonismo, alinhando obedientemente com o dogmatismo orçamental e austeritário imposto por Berlim. 

Além disso, Barroso não extraiu nenhuma lição – pelo menos confessável – do eurocepticismo agressivo que se exprimiu nas últimas eleições para o Parlamento Europeu e constitui um dos elementos de prova da sua irrelevância como presidente da Comissão. Nas vésperas do seu discurso de despedida, manifestou-se em Londres contra o “erro histórico” do Governo britânico em pretender limitar a entrada de emigrantes da UE no Reino Unido. Ora, esse “erro histórico” resulta precisamente do temor de David Cameron em ser ultrapassado politicamente pelos extremistas eurocépticos, essa realidade que, como tantas outras, o ex-presidente da Comissão de Bruxelas não soube oportunamente detectar. Talvez porque o eurocepticismo faz também parte da sua herança.