Arteixo, mon amour

A notícia que está a chocar os entusiastas da fast fashion esta semana é sobre o deus do seu culto, Amancio Ortega, fundador do Grupo Inditex, o terceiro homem mais rico do mundo, e aquilo que irá receber em dividendos: cerca de 900 milhões de € euros. 

Amancio é agora acusado de ser um ‘porco capitalista’ por ter uma fortuna avaliada em cerca de 47 mil milhões de euros, feita à custa de quem o acusa impiedosamente nas redes sociais. E até consigo entender. Só não consigo entender é a dualidade dos emissores deste tipo de comentários, ou como diria alguém a propósito do vira-casaquismo, a ‘flexibilidade’ de quem se sente muito indignado com os valores destes dividendos, associados a uma enorme falta de ética, mas que não hesita em utilizar a hora de almoço para comprar um trapinho, que assim como assim custa o mesmo que o almoço e compreende em si muito mais felicidade. 

O pronto-a-vestir como o conhecemos hoje, começou a ser traçado por Yves Saint Laurent, ainda enquanto aprendiz de feiticeiro na Casa Dior, onde ingressou aos 17 anos, em 1953. Com a morte de Dior em 1957, Saint Laurent assumiu o controlo criativo da marca, então já concentrada em produzir colecções mais jovens e dinâmicas para a mulher do pós-guerra. Em 1961 fundou a marca homónima tal como a conhecemos hoje e, em 1966, com a abertura da uma loja na margem esquerda do Sena, a tão famosa e boémia rive gauche parisiense, tornou-se o pioneiro daquilo que hoje conhecemos como prêt-à-porter: roupa com bom corte e bons materiais a preços acessíveis. Depois desta inovação e comprovado o sucesso das ideias de Saint Laurent, o conceito de pronto-a-vestir alastrou-se a toda a indústria de moda, tendo-se adaptado às necessidades dos consumidores e dos mercados; para isso, deslocou-se a produção para destinos cada vez mais baratos, de forma a obter lucros cada vez maiores e garantir assim uma expansão efectiva.

Digamos que o Sr. Ortega é apenas uma versão optimizada de Saint Laurent, com 11 anos de atraso. 

A primeira Zara abriu em 1975 em Arteixo, na Galiza. Hoje em dia está presente em mais de 88 países, sendo um sucesso comprovado à escala mundial.

Como todas as empresas cujas inovações de mercado são perceptíveis numa base diária, também a Zara, como exemplo de um dos modelos de maior sucesso na indústria têxtil e grande revolucionadora de costumes, é alvo de duríssimas críticas por parte da comunidade internacional, muito por causa das denúncias das péssimas condições de trabalho de quem produz aquilo que a maioria da humanidade consome, sem se preocupar com as precárias condições de trabalho na hora de usar um vestido quase descartável. 

Conheci por acaso o filho do dono de uma das fábricas que a Zara adquiriu nos seus primórdios. Era uma fábrica de tingimento de tecidos que sempre teve um volume de negócios considerável, na província de Guipuzkoa, no País Basco espanhol. Alguns anos após a abertura da sua primeira loja, o Sr. Ortega tornou-se cliente desta fábrica. E daí até se tornar o maior cliente da fábrica foi um pulo. O pai do meu amigo contratou mais mão-de-obra e expandiu as instalações para que os outros clientes não ficassem lesados e se pudesse assegurar a mesma qualidade de produção a todos os clientes. O negócio do Sr. Ortega continuou a crescer, bem como as suas necessidades, e a fábrica do pai do meu amigo continuou a contratar pessoal e a expandir-se cada vez mais. Até que a oferta da compra da fábrica chegou. Uma oferta justa, baseada no seu valor àquela data. E o negócio realizou-se: a fábrica foi comprada pelo Sr. Ortega, os postos de trabalho de todos os funcionários foram mantidos e o pai do meu amigo continuou a geri-la e a proporcionar mais postos de trabalho bem remunerados. 

Hoje em dia não sei o que será feito do meu amigo, do pai dele, da fábrica ou dos trabalhadores. 

Só sei que o Sr. Ortega não me parece um monstro assim tão monstruoso. Parecem-me monstruosas as pessoas cuja felicidade é altamente dependente do sucesso do capitalismo selvagem, insistem em vociferar contra determinados agentes, sublinhando o sucesso do protesto acéfalo e pouco esclarecido, enquanto contribuem para o aumento dos dividendos do Sr. Ortega, dizendo que é tão bom comprar muito baratinho nos saldos. Por norma, faço questão de não comprar neste tipo de lojas e de não alimentar este género de monstros. Reconheço que nem sempre é fácil, e que porcos capitalistas somos todos os que já comprámos pelo menos uma t-shirt na vida. No entanto, basta olhar para o Sr. Ortega e reconhecer duas coisas que são capazes de enjoar: sem o seu contributo não se teria democratizado o consumo de moda no Ocidente e que mesmo os defensores da classe operária davam um rim para ter um décimo da sua fortuna, ou então não se viam por aí a jogar no Euromilhões.

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