Inquérito às avessas…

Raramente uma Comissão Parlamentar de Inquérito despertou uma tão aguda expectativa como a que vai ocupar-se do colapso do grupo BES, durante os próximos meses. Mas começa mal.

Primeiro, fica-se intrigado com a ordem acordada das audições parlamentares, que, a ser confirmada, coloca à cabeça o governador do Banco de Portugal, Carlos Costa, seguido de outros responsáveis do banco, do presidente da CMVM, ministra das Finanças, antigos ministros e governadores e, até, membros da troika, reservando um longínquo e modesto 20.º lugar para Ricardo Salgado, afinal, o protagonista principal da derrocada do BES e do grupo familiar.

É estranho porquanto não foi este o modelo seguido em anteriores inquirições, designadamente a do BPN, quando Oliveira e Costa depôs muito antes do então governador do BdP, Vítor Constâncio.

Com sorte, talvez Salgado seja ouvido já com um cheiro a Natal no ar, ou logo a seguir ao réveillon, quadras muito propícias ao acompanhamento, atento e interessado, destes testemunhos…

Ao contrário do que preconizava o PCP, os partidos da maioria, o PS e até o Bloco não quiseram chamar primeiro o ex-líder do BES.

Numa explicação esfarrapada, o deputado do PSD, Abreu Amorim, haveria de dizer, segundo o Expresso, que “o maior favor que poderíamos fazer aos antigos gestores do BES seria ouvi-los sem estarmos devidamente municiados de factos, que poderão ser prestados pelos reguladores, e não só”. É uma declaração, no mínimo, surreal.

Onde estaria o deputado quando o governador do BdP fez uma comunicação dramática ao país, a 3 de Agosto, na qual afirmou, preto no branco, após anunciar o fim do BES, que “o Grupo Espírito Santo, através das entidades não financeiras não sujeitas a supervisão do Banco de Portugal, desenvolveu um esquema de financiamento fraudulento entre as empresas do grupo”?

A mesma perplexidade fica repartida com a bizarra justificação, dada pelo socialista José Magalhães, para adiar a audição de Salgado. Ouvi-lo primeiro, como explicou judiciosamente, seria o mesmo que permitir que ele se comportasse “como na tacada inicial de um jogo de snooker”. Ou seja, dispersão das bolas e o risco de alguma acertar no buraco…

Percebe-se o precavido raciocínio do vice-presidente da Comissão, atentas as palavras premonitórias do patriarca Mário Soares quando disse na RTP, aludindo a Salgado, que “quando ele falar, e vai falar, as coisas vão ficar de outra maneira”.

Intui-se, portanto, que para sossego dos membros da Comissão, quanto mais tarde melhor…

Este surpreendente calendário deixa Salgado no sofá, a assistir ao desenrolar dos acontecimentos, ajustando a estratégia com os seus advogados e conselheiros de media para quando for a sua vez de se sentar na Comissão.

A extensa lista de convocados, já aprovada, é um desafio à eficácia. Ao todo, contam-se 121 personalidades. Gente demais, apesar de estar em causa o banco que atravessou regimes e gerações.

Com o arrastamento dos trabalhos, é de temer a fadiga e a apatia progressiva da opinião pública.

Passaram três meses e ainda se aguardam os resultados da auditoria forense pedida pelo BdP – e nada se sabe das investigações anunciadas pelo Ministério Público.

Um outro caso paradigmático teve um desfecho diferente na Justiça americana. Em pouco mais de seis meses, Madoff, que fez estremecer Wall Street, foi preso, julgado e condenado.

Por cá, a ampulheta obedece a outra lógica e o tempo mede-se noutra dimensão. Valha-nos a transcrição, em jeito de folhetim, das instrutivas reuniões privadas do Conselho Superior da família Espírito Santo.

É uma sina. E esse é um dos riscos da Comissão de Inquérito que abre as portas daqui a dias. Julgar o supervisor – pecado de que já se queixava Constâncio nas aflições do BPN -, antes de se saber como foi possível a implosão de um edifício que parecia sólido, com fama de estar à prova de qualquer teste de stresse.

São já visíveis as tentativas de branqueamento de responsabilidades, lembrando irresistivelmente o famoso PEC IV, invocado ainda hoje por Sócrates – no seu impúdico palanque televisivo -, como a salvação para poupar o país ao resgate.

Sabe-se que não era verdade e que a única saída para evitar a bancarrota, já com a corda na garganta, foi o então primeiro-ministro pedir o auxilio internacional, que nos trouxe a troika e a austeridade. Contudo, ele teima em pintar a ficção, com os acólitos do costume.

Espera-se muito desta Comissão. Demais, talvez. Pode a história não estar toda contada. Mas conhece-se, de antemão, o desfecho do enredo. Pelo palco, vão passar vários actores conhecidos, e outros menos. Mas todos têm rosto. E nome. Se a Comissão falhar, não será por falta de provas…