Marquês na fronteira

Recorde a entrevista que o SOL publicou a 26 de Janeiro de 2008 a Fernando Mascarenhas, o marquês de Fronteira que hoje morreu

Marquês na fronteira

“Para o marquês de Fronteira e Alorna, o regicídio foi um acto terrorista. Se fosse chamado a um referendo, não sabe se colocaria a cruz na monarquia ou na república. No palácio que habita acolheu reuniões de Esquerda durante o Estado Novo e afirma-se agnóstico 

Tem alguma teoria sobre quem orquestrou o regicídio?

Não. Como em tudo, há vários tipos de pessoas, umas bem-intencionadas, outras não tanto. Há sempre oportunistas. Mas é um assunto que nunca estudei.

Não lhe provocou interesse?

Nunca me preocupou muito. Era coisa do passado e nunca me interessei por descobrir quem foram os mandantes. Foi um assassinato de um chefe de Estado. Obviamente, penso que não havia condições políticas em Portugal que tornassem eticamente aceitável uma solução desse tipo. Só em situações extremas, de regimes verdadeiramente ditatoriais, é que acho um atentado político aceitável. Não me parece que fosse o caso. E ainda por cima mataram também o príncipe, cuja responsabilidade política seria praticamente nula. É um acto terrorista como outro qualquer. Um pouco avant la lettre.

A família chegou a contar-lhe histórias desse tempo?

Do regicídio não. Lembro- -me de a minha avó paterna contar histórias da Carbonária. O meu avô até esteve preso por ser monárquico. Ainda ouvi falar das suas incursões monárquicas mas todas as histórias da minha infância diziam respeito já à república. Foi um período complicado e depois deu no que deu.

Acha que se não fosse o regicídio, poderíamos viver ainda num regime monárquico?

Não é impossível. Nunca pensei nisso, mas por que não? Noutros países mantém-se. Os países que continuam a ser monarquias também são mais nórdicos. No Sul, no Mediterrâneo, só Espanha voltou a ser depois de se tornar república.

E vê vantagens na existência de uma figura máxima do Estado supra-partidária?

Há vantagens na monarquia, como as há na república. A monarquia tem a vantagem de essa figura supra-partidária ser educada para a função de chefe de Estado. A república tem a vantagem de o chefe de Estado ser escolhido. Se houvesse um referendo, não me é claro se votaria na monarquia ou na república.

Já por várias vezes foi referido como o monárquico mais republicano…

Eu nunca disse isso. Já fui monárquico, já fui republicano, hoje em dia tenho uma posição mais ou menos neutra sobre o assunto. Acho que é importante o regime ser democrático, se é monarquia ou república, parece-me secundário. É extraordinário, apesar de tudo, que nunca se tenha perguntado ao povo português. Está vedado pela Constituição e isso parece-me pouco democrático. É claro que a personalidade de um Rei é muito importante, como é a de um Presidente da República. Veja-se em Espanha o papel do Rei Juan Carlos na consolidação da democracia.

Ao longo dos anos tem acompanhado a política e tomado posições, como no apoio à candidatura presidencial de Manuel Alegre.

Sim, mas sempre posições algo marginais, nunca fiz política partidária. Apoiei o Manuel Alegre, como apoiei o Jorge Sampaio ou o Manuel Maria Carrilho para a Câmara de Lisboa. Ainda estou convencido que daria um bom presidente, mas como candidato foi catastrófico. Participo, mas mais como cidadão.

Sente-se uma pessoa mais de Esquerda?

Sem dúvida.

Acha que estamos bem politicamente?

Nunca estamos. Já estivemos pior. Apesar de tudo, estamos melhor com o eng.º Sócrates do que com o dr. Santana Lopes, sobre isso não tenho dúvidas. O actual Governo não me causa particular entusiasmo. Tem tido determinadas qualidades, tem tomado posições que me parecem bem. Por outro lado, há outras coisas que não me parecem tão bem. Há uma coincidência muito infeliz entre a mania portuguesa das burocracias e uma mania igual em Bruxelas, com que o Governo parece estar em consonância entusiástica. Um exemplo é o das leis e decretos que regulam a acção da ASAE. Acho muito bem que se ponham certificados de higiene nos produtos, mas se uma pessoa quiser continuar a consumir um produto que toda a vida se consumiu e que não matou ninguém, parece-me absurdo que seja proibido. Quem quiser correr o risco, corre. Com todas estas regras, os sabores perdem-se.

Quando diz que já estivemos pior, politicamente, refere-se ao Estado Novo…

Claro! Eu nasci em 45, ainda vivi 29 anos no Estado Novo. Lembro-me muito bem da falta de liberdade. Ao mesmo tempo recordo o oposto. Vivi um ano em Coimbra e durante a Queima das Fitas havia uma liberdade política naquela cidade como só se via, quando muito, nos períodos eleitorais. É verdade que bebiam do primeiro ao último dia, mas assistia-se a coisas extraordinárias, como ver um aluno finalista de Medicina a subir a uma mesa do café Mandarim e fazer um discurso político. Seria impensável, mas aconteceu e ele não foi preso.

Também organizou reuniões políticas em sua casa?

Sim, em 1969, na altura das primeiras eleições após a substituição de Salazar. Nesse momento havia alguma esperança.

E antes disso, fez algum trabalho político?

Vagamente. Fiz parte da associação académica, assistia às RGA (Reunião Geral de Alunos). Fui até suspenso da faculdade durante 25 dias por ter aparecido numa fotografia de uma RGA da Faculdade de Letras de Lisboa, uma coisa completamente absurda. Quando saí da minha aula já estava quase toda a gente, pelo que o único sítio que encontrei para assistir foi atrás da mesa dos oradores. Apareci em todas as fotografias da PIDE e fui suspenso. Mas nem me dei conta. Dias depois, fui à universidade e foi o contínuo, muito atrapalhado, que me disse que não podia entrar.

Nessa altura, era igual ser ou não marquês?

Depende muito. Em termos de ser chamado à PIDE, por exemplo, ser marquês tinha as suas vantagens. Tinha as costas quentes. Fui interrogado três vezes mas nunca fui torturado, foram sempre coisas relativamente light, desagradáveis na mesma, mas light. E nisso não tenho dúvidas de que o nome e a posição social tiveram influência. Poderia ter sido bastante mais desagradável.

Após o 25 de Abril, temeu pelo património da família?

Sim, sem dúvida. Durante o PREC saí mesmo de Portugal. A nossa herdade foi ocupada e soube que havia ordens para eu não sair do país. Felizmente não era verdade, teria apenas de ser revistado. Então, exilei-me em Junho de 1975, mas voltei ainda nesse ano. Deve ter sido dos exílios mais curtos.

Esteve onde?

Estive em Marraquexe durante dois meses e meio, 15 dias num hotel e o resto numa casa alugada; depois fui para Londres, para casa de uma tia e regressei a Lisboa.

Porquê Marraquexe?

Porque era perto, era um sítio barato, e também tinha conhecido um rapaz marroquino que poderia ser um contacto lá. Aluguei um apartamento, uma semi-cave na zona ocidental de Marraquexe. Estive quase sozinho, recebi apenas a visita da minha mãe e de amigos. Tinha uma pessoa que me tratava das compras e o mínimo de companhia para não me sentir só. Ao mesmo tempo foi um período interessante, porque pude recapitular toda a minha vida. Gostava de fazer isso outra vez, meter-me num sítio durante dois meses, mas claro que sem um pretexto exterior é complicado.

Nesse período tomou alguma decisão importante?

Não sou pessoa de grandes decisões. Mas amadureci muito e escrevi um diário, coisa que não fiz mais, a não ser em viagens. Escrevi e recebi muitas cartas. Tenho isso tudo anotado e guardado. Mas gosto mais de deixar as coisas surgirem naturalmente, não sou pessoa de resoluções drásticas. Prefiro decisões que são tomadas mais pelo corpo do que pela cabeça.

Viaja muito?

Não tanto como gostaria. Para já tenho um limite para viagens que é o Brasil, é a distância máxima que estou disposto a percorrer. Gostava de ir ao Japão, mas já desisti. Viagens muito compridas são cansativas, não estou para isso. Posso dizer que essa foi uma decisão que tomei.

Viajou mais na juventude?

Bastante, logo na infância, porque tinha problemas de saúde. O médico disse que tinha problemas respiratórios e mandou-me ir à montanha, pelo que, aos seis anos, passei a ir para a montanha em Espanha e depois para a praia em Zarauz, no País Basco. Passávamos um mês e meio nisto. Por razões médicas também, passei a ir à Suíça, a Itália, a França e aos Estados Unidos. Já em 1965 fiz uma viagem extraordinária, porque o meu padrasto [o arquitecto Frederico George] fez o pavilhão de Portugal no Rio de Janeiro. Primeiro fui só com a minha mãe até ao Rio. E depois, no regresso, acabámos por ir do Brasil ao Peru, depois ao Equador, à Colômbia, ao Panamá, à Guatemala, ao México e a Nova Iorque. Lembro-me que tinha exames em Outubro e acabei por desistir. Foi a viagem da minha vida.

A sua educação foi feita com professor particular?

Tive uma professora de Francês em casa, a partir dos três anos, e depois fui para o Liceu Francês até à quarta classe. O meu pai insistiu então para que eu fosse para o Colégio Militar. Fiquei horrorizado com a ideia e a minha mãe, felizmente, horrorizada ficou também. Fui para o Liceu Passos Manuel. Depois fiz os sexto e sétimo anos no Liceu Camões, entrei para Direito. Não gostei e mudei para Letras no ano seguinte.

E quando foi para Coimbra?

Isso foi já depois, em Filosofia. Foi no ano em que me casei, 1967. Tinha um ambiente completamente diferente do de Lisboa. Em Coimbra a divisão entre Direita e Esquerda era muito mais clara. Havia os cafés da Direita que eram na Baixa e os da Esquerda que eram na Alta. Encontrávamos os nossos amigos da Esquerda no Moçambique ou no Mandarim, os dois lá em cima. Os cafés de baixo nunca frequentei.

Deu aulas em Évora entre 79 e 88. Conta-se que um exame seu terminou à noite, já em sua casa.

É verdade. Os meus testes eram sempre com consulta e sem limite de tempo. Quando a Universidade fechava levava-os para o passeio em frente ou para um restaurante. Mais tarde, passei a levá-los para casa. Acabei por ser proibido porque num desses exames fui levar uma aluna a casa, com duas colegas para que não houvesse um equívoco, porque era tudo puramente académico. Mesmo assim o pai da menina fez queixa, porque eram já duas da manhã. Pelo menos enquanto estivessem a fazer o teste, tinham de pensar no assunto, coisa que não fariam de certeza durante o resto do ano.

Eram aulas de quê?

Várias coisas. No início dei História do Pensamento Económico e Social, uma coisa aterradora, porque era um assunto que nunca tinha estudado, do ponto de vista económico. Depois dei Teoria da História a turmas de Sociologia, Gestão e Economia, Introdução à Problemática do Saber Histórico e finalmente Teoria da História para alunos de História.

E na sua educação, sente-se um produto mais da sua mãe que do seu pai?

Convivi muitíssimo mais com a minha mãe do que com o meu pai, uma pessoa que via poucas vezes. Tirando o último ano em que começámos a encontrar-nos um bocadinho mais, via-o três vezes por ano: nos anos dele, nos meus, e no Natal ou na Páscoa. Era curto. Com o meu pai fazia imensa cerimónia. Estava sempre com a minha mãe, com quem vivia em casa dos meus avós.

O seu pai, Fernando Mascarenhas , era forcado…

Sim, foi forcado e depois corredor de automóveis.

Fascinava-o essa vida dele?

Sim, aliás fiquei com esse 'bichinho'. Ainda hoje sou um fã de Fórmula 1. Temos aqui uma equipa que se junta sempre para assistir às corridas. Lembro-me perfeitamente de ir ver as provas do meu pai e claro que é muito emocionante para um miúdo ter o pai a correr. Durante anos, após a sua morte, ouvi contar histórias dele, de cenas de pancadaria, etc. Estava fartíssimo de as ouvir.

Quando foi viver com a sua mãe?

Tinha dois anos e meio ou três quando os meus pais se separaram. Portanto, não me lembro de viver aqui no palácio antes de o meu pai morrer. Só voltámos para cá depois disso.

Em que diferia a sua educação da de outro miúdo?

Isso veio-me mais pelo lado do meu avô materno. Em que era diferente? Havia coisas difíceis de definir. Eu sentia que havia nas pessoas uma expectativa, o que era um bocado irritante. A partir dos 14 anos comecei até a criar um certo distanciamento em relação à família para me afirmar por mim próprio.

E reaproximou-se quando?

Só mais tarde, aos 40 anos, quando me senti suficientemente seguro. Ainda por cima dava-se o caso de o meu pai ser usufrutuário da casa e da herdade, porque a minha tia-bisavó tinha-me deixado as duas coisas directamente. Era uma situação curiosa. Até houve uma cena num almoço em que o meu pai disse 'a minha casa'. E eu: 'Sua não, minha'. Pôs-me de castigo e de vez em quando perguntava-me 'então, a casa é sua ou é minha?'. E eu: 'É minha'. Depois, lá disse: 'Pronto, está bem, é nossa'. Tive consciência de certas coisas muito cedo. Mas o que acho mais distintivo é sentir que sou um elo numa cadeia de várias gerações, o que implica ter uma percepção do tempo diferente. Tendo a ver as coisas a mais longo prazo.

Aceitou bem esse papel ou sentiu-se obrigado a isso?

Por um lado, havia uma certa inevitabilidade histórica – sabia que era esse elo quer quisesse quer não. Quis garantir que poderia sê-lo à minha maneira, sem perda de autonomia. Daí o afastamento da família aos 14 anos. Passei a afirmar-me como uma pessoa com ideias próprias e sem problemas em verbalizá-las. Isso rapidamente me granjeou algum respeito. Talvez tenha tido sorte, mas a verdade é que o papel que era suposto desempenhar acabei por assumi-lo por opção.

Foi também administrador do Condado da Torre…

Sim, era ainda estudante quando comecei a tomar conta da herdade. Apanhei o 25 de Abril por um lado como jovem estudante de Esquerda, mas por outro como latifundiário. Vivi a Revolução pelos dois lados, e não terá havido muita gente com esse 'privilégio'.

Diz no seu livro, Sermão ao Meu Sucessor, que pensou em vender o palácio.

A seguir ao 25 de Abril pensei em vender a casa. Mais do que uma vez. Da última foi a Embaixada do Brasil que esteve interessada. Felizmente pedi sempre mais dinheiro do que aquele que me quiseram dar. Os últimos 30 anos da minha vida teriam sido muito diferentes. Não teria feito a fundação e ter-me-ia dedicado à carreira académica.

No livro refere que a posição de marquês traz algumas obrigações específicas. Quais?

O facto de ter um determinado nome dá à pessoa alguns privilégios. A obrigação é dar alguma coisa de volta à sociedade por um crédito que se teve antes de dar provas. A condição de nobre deve coincidir com a qualidade de nobre. Como substantivo o nobre é uma pessoa que nasce numa determinada classe social, como adjectivo é alguém que tem um determinado tipo de comportamento. Mas também há casos em que o facto de a pessoa ter um título nobiliárquico era causa de afastamento das outras. Aconteceu-me uma ou duas vezes. Dadas as reuniões que houve cá em casa em 69, que foram um grande escândalo, os meus 'colegas' da nobreza olhavam-me com bastante desconfiança. Mais tarde fiz-me sócio da Associação de Nobreza Histórica e passei a frequentar as assembleias gerais. No final de uma reunião, um senhor disse-me: 'Finalmente conheço a fera' [risos]. Dei uma gargalhada e fiquei maravilhado.

Afirma também que a soberba é uma armadilha.

Devo muito à minha mãe porque acho que em miúdo tinha esse lado do orgulho estúpido. Lembro-me de ter dado uma bofetada numa criada, não sei porquê. A minha mãe obrigou-me a pedir-lhe desculpa. Fico-lhe muito grato por isso, mas é claro que na altura fiquei danado. Mais tarde, entre os 18 e os 23 anos, tive uma grande transformação que foi procurada, construída. E para melhor, felizmente.

E o que buscava nessa transformação?

Libertar-me de um excesso de sentimentalismo, era muito piegas. E era também muito pinga-amor, apaixonava-me com uma facilidade horrível. Percebi que nunca havia de ser gente na vida se continuasse nesse estado de me apaixonar de 15 em 15 dias.

O seu sucessor, o sobrinho a quem dedicou o livro, na altura era uma criança. Sente que cumpriu o seu papel de educador?

Não, para dizer a verdade não me sinto nada convencido. Fiz aquilo que estava ao meu alcance. Enfim, ele não é meu filho, não tenho a autoridade sobre ele que tem um pai ou uma mãe. O que eu podia fazer era deixar-lhe alguns textos que o ajudassem a orientar-se.

Tem pena de não ter um filho a quem dirigir estes textos?

Tenho. Mas sabe-se lá, pode- -se ter um filho e ser uma desgraça. A gente nunca sabe se as coisas vão funcionar. Mas gostava de ter tido um filho.

A Igreja sempre esteve ligada à monarquia. É religioso?

Não. Fui educado catolicamente, como quase toda a gente. Aos 18 anos tive uma crise mística, deixei de praticar os rituais. Isso permitiu-me perceber para que servem: são fundamentais para manter a fé. Não sou ateu, sou agnóstico. Acho que era muito mais simpático que Deus existisse, mas fé não tenho. Tenho imenso respeito pela Igreja.

Dedica muito tempo à fundação?

Sim, muitas vezes a preparar eventos culturais. E depois o e-mail, que me absorve imenso. Mas também jogo muito bridge e os meus jogos de computador, vejo televisão, sobretudo séries e filmes. Não sou muito de noticiários, até porque às vezes está-se meia hora a falar de futebol…”

emanuel.costa@sol.pt