O meu pai inventou que as mulheres não iam à casa de banho

Difícil de entender que tantos portugueses conheçam Ibiza sem conhecer o Gerês. Se regalem em Copacabana sem nunca terem visto São Miguel. Ou prefiram conhecer a Europa sem antes se perderem nas cidades que nos fazem ser estes. Ganham em bronzeado o que perdem sem saber que perderam. Ficam na ignorância. Estátuas de bronze, ou…

ma viagem não é necessariamente um movimento de um lugar tangível para outro lugar tangível. Por vezes, tantas vezes acrescentaria, é uma viagem para um lugar sem lugar, um caminho de pedras ou de verde luminoso do que somos feitos por dentro. Mas irrita-me muito que, quando falamos das viagens que se podem fazer de avião, carro ou comboio, me venham com o verdejante das grandes parangonas internacionais esquecendo o das nossas paisagens, irrita-me. É provinciano. Talvez por ser tão português. Um português de Lisboa, é bem certo. Lisboa que é uma parte de mim, sem ela desoriento-me, perco-me. Embora no Porto me obrigue a ficar. Até pelo respeito pela memória do que fizeram, do que são, da coragem de terem saído à rua em quase todos os momentos importantes da nossa história, pela generosidade que vem tanto de trás. Nos Descobrimentos, muitas caravelas, as que por lá passavam, eram abastecidas da melhor carne, dos melhores presuntos. Em troca, o povo humilde guardava as tripas e delas se alimentava. Tripeiros, pois. O melhor dos elogios que se lhes pode fazer. 

Quanto às outras viagens, as minhas preferidas, é mais complicado. Tem que ver com as pessoas, ilhas privadas e diferentes em relação a todas as outras ilhas. Encontrei pessoas distraídas que parecem ter um GPS no espírito e gente espiritualmente desgovernada que nunca se perde nas ruas. Uma coisa tem pouco que ver com a outra. Quando nos perdemos numa cidade alguém nos acaba por resolver o problema, mas quando nos batalhamos dentro de nós não encontramos facilmente quem nos possa ajudar. Temos de nos encontrar a nós próprios, decorei a frase antes de saber o que significava. Sei hoje o que quer dizer, embora continue a não compreender. Porque quem se deseja encontrar não sabe o que realmente procura… Ser feliz como antes, talvez. Só que a "felicidade", que coloco sempre em aspas, é motivada pelas circunstâncias e quase nunca por aquilo que se é antes de qualquer circunstância. Logo, o desejo de nos encontrarmos é aterrador. Porque a ser verdade é uma prova de ignorância que não se resolve com livros ou os melhores professores do mundo. Não passa de uma ignorância funda, um vazio. 

Ainda ontem, numa conversa de almoço falei acerca disto. E ouvi. Um amigo forçou-me com uma pergunta académica: se pudesses prever quantos anos te restam serias mais feliz? Desgraçada pergunta de resposta tão óbvia. O que mudaria em nós se soubéssemos quantos anos, meses ou dias nos restam? Em mim, muita coisa. Mesmo que me dissessem 'morrerás dentro de quarenta e três anos e quatro meses', passaria a ser uma bomba relógio. Sei que vou morrer? Evidentemente. Mas não conheço pormenores da viagem, nem tenho o bilhete na minha posse, a morte é apenas um pressentimento, uma angústia existencial. Com ele na carteira esse dia de 2056 transformar-se-ia numa obsessão que me condenaria à morte muito antes de morrer. Na data em que o bilhete fosse válido, já não seria eu mas apenas aquilo em que me transformei por saber a verdade. Um homem data, um problema matemático de escola primária, um projecto de equação. 

As mortes, por muito que nos custe, são importantes se na vida quisermos ser completos. Porque viver é construir uma história com os outros, mas também um mundo interior que nasce apenas com a perda. A única dor sem explicação, desenquadrada de qualquer lógica, é a de um filho. Não há palavras para a definir, não deve existir dor que se lhe compare. O sofrimento pela morte de um pai ou de uma mãe é necessário: é-nos tão vital a sua vida como a sua morte. Porque em vida nos moldaram o que somos e mortos nos tornaram mais completos no que somos por dentro. Obrigado aos dois, ao meu pai e à minha mãe, permitiram-me ser um habitante de dois mundos. Viver na plenitude. 

A tal saudade, a que dizemos que é nossa. É disso que falo, mas é apenas uma parte pequena do que digo, julgo que somos mais profundos do que isso. Isso da saudade é um sentimento deste mundo, real, muito longe de uma abstracção. Leva-me também a um desabafo, fica entre nós, que não passe disso. Estou um pouco cansado de tudo fazermos prova de que somos distintos. E de tudo fazermos prova de que somos incompetentes. Elevamos os nossos aos píncaros – o maior treinador, o maior futebolista, o maior cientista, banqueiro, gestor ou fabricante de luvas. E arrumamos as expectativas num elevador que as leva às profundezas da mina mais funda – negativos, fadistas, invejosos, imorais e sei lá mais o quê. Os optimistas inventam de um lado, os pessimistas do outro. E depois há os optimistas/pessimistas, mudam a cada hora e até ao minuto, uma montanha russa de emoções… Lá está: até inventamos palavras como se fossem apenas nossas.

Saudade, claro. Os outros não a têm, a saudade é só nossa. Quando era criança o meu pai inventou que as mulheres não iam à casa de banho, enterrei o mito só depois de me ter despedido do Pai Natal. Já o adeus à saudade foi depois; um genovês contou-me que existia uma palavra 'saudade' na sua terra: Macaia. Sorte a deles. Fortuna também de quem não tem palavra alguma, apenas o olhar. E uma dose considerável de silêncio, a união de dois mundo que tanto prezo.