A dama de ferro

“Uma das exportações mais bem-sucedidas da Grã-Bretanha”. É desta forma que Natalie Massenet, a presidente do British Fashion Council justifica a atribuição do Outstanding Achievement Award a Anna Wintour. A editora da Vogue norte-americana há 26 anos – e desde 2013 também a directora artística da Condé Nast, grupo da Vogue e também da Vanity…

Num comunicado oficial, o British Fashion Council elogia a influência de Wintour não só junto das grandes casas de moda – que sucessivamente a procuram como consultora -, mas também no apoio e divulgação de novos talentos – tendo criado, em 2003, o Vogue Fashion Fund, um fundo para apoiar monetariamente jovens designers. O prémio aponta também a importância de Anna Wintour na divulgação da moda, tendo organizado inúmeras e importantes exposições, como é o caso da dedicada a Alexander McQueen, no MET de Nova Iorque, pouco depois da morte do designer inglês. Aliás, a ligação de Anna Wintour ao MET é bem conhecida desde 1995, quando a editora começou a organizar a Gala Anual do Instituto do Traje, parte integrante do museu.

Nessa altura, o museu angariava cerca de 720 mil euros por ano para este instituto; só em 2014, Wintour conseguiu angariar 99 milhões de euros para reabilitar todo o instituto e o seu espólio. Um valor impressionante que levou o director do MET, Thomas P. Campbell, a rebaptizar o instituto como The Anna Wintour Costume Center. A inauguração coube a Michelle Obama, cujo marido Wintour apoiou e ajudou a reeleger em 2012.

“Estou aqui porque tenho muito respeito e admiração por esta mulher, a quem tenho o orgulho de chamar amiga”, disse, à data, a primeira-dama.

De certa forma, este Outstanding Achievement Award é um reconhecimento da importância de Anna Wintour no mundo da moda, mas também dos seus 65 anos de vida – comemorados a 3 de Novembro. Mas, de certa forma, também reforça os rumores de que Anna Wintour pode estar a preparar-se para abandonar as luzes da ribalta. Nas últimas semanas, aliás, foi repetidamente referido o nome da actriz e fashionista Sarah Jessica Parker para substituir Anna Wintour no cargo de editora da Vogue norte-americana – sendo que Wintour se manteria como directora artística da Condé Nast. A protagonista da saga O Sexo e a Cidade já foi capa da revista várias vezes e a amizade entre as duas mulheres tem largos anos. Ainda assim, representantes da Vogue já vieram esclarecer que não passam de rumores: “Anna e Sarah Jessica são boas amigas de longa data e a ideia de Sarah substituir Anna na Vogue nunca foi discutida”.

Não deixa, no entanto, de ser irónico que, se Anna Wintour optar por se afastar do cargo de editora agora, o faz no ano em que a Vogue norte-americana bateu recordes de vendas – culminando com a edição de Abril em que fez capa com Kim Kardashian e Kanye West na mais polémica capa da Vogue de sempre. E sobre a qual Wintour falou pela primeira vez este mês. Com a ironia que a caracteriza: “O papel da Vogue é reflectir o que se passa. A primeira celebridade que pus na capa da revista foi Madonna e na altura essa decisão foi considerada muito controversa, mas acho que, se nos mantivéssemos sempre nos limites do bom gosto e se só escolhêssemos pessoas de bom gosto para a capa, seríamos uma revista bastante aborrecida! Ninguém falaria sobre a Vogue e é muito importante que falem. Espero que neste próximo ano surja outra Kim Kardashian!”.

'Nuclear Wintour'

A primeira vez que Wintour entrou na Vogue foi para uma entrevista, em 1982. A então directora da publicação, Grace Mirabella, perguntou-lhe que cargo gostaria de ter na revista. Wintour respondeu sem pudores: “O seu”. Seis anos depois via o desejo realizado.

A imprensa, de resto, sempre lhe correu no sangue. Durante quase 20 anos, o seu pai foi editor do London Evening Standard. E um dos seus irmãos, Patrick, é editor de política no The Guardian. Mas a influência do pai foi muito além do jornalismo. Segundo a própria, foi o pai que a levou para o mundo da moda. “Acho que o meu pai decidiu por mim que eu deveria trabalhar em moda”, recordou em The September Issue, um documentário de 2009 sobre Wintour e a sua equipa na preparação da maior edição de sempre da Vogue. No mesmo filme explica que foi o pai que, aos 15 anos, lhe arranjou o primeiro emprego, na importante loja Biba, no centro de Londres. No ano seguinte, também por influência do pai, trocou a North London Collegiate School por um programa de estudos nos armazéns Harrods.

Quando começou a namorar com Richard Neville, começou também a trabalhar na sua polémica revista, a Oz, que deixou em 1970 para trabalhar na Harpers and Queen. Foi aqui que deu os primeiros passos no jornalismo de moda e que começou a relacionar-se com criadores, modelos e fotógrafos, revelando já um olhar inovador. Talvez por isso mesmo, acabou por se incompatibilizar com um colega e mudou-se para Nova Iorque com o novo namorado, o jornalista Jon Bradshaw.

Já em Nova Iorque – cidade que adoptou e que adora porque é um local onde “toda a gente é de outro sítio e ninguém é julgado pelo seu sotaque ou por quem é o nosso pai” – passou pela Harper's Bazaar US, British Vogue e House and Garden, até, em 1988, ter assumido o tão desejado cargo de editora da Vogue norte-americana.

A sua primeira capa para a publicação de moda deixou logo claro que começava ali uma nova era. De tal forma que telefonaram da gráfica a perguntar se tinha havido algum erro com a fotografia de capa: a manequim israelita Michaela Bercu, com uns básicos jeans Guess e um luxuoso casaco Christian Lacroix Haute Couture.

“O casaco fazia parte de um fato, mas a saia não serviu à modelo, que tinha estado de férias e ganho algum peso. Mas isso não interessa, serviu apenas para reforçar a ideia de pegar na grandiosidade da Alta Costura, pô-la lado a lado com peças comuns e ver o que acontecia”.

O que aconteceu foram os primeiros passos de um percurso de 26 anos daquela que ninguém questiona ser a mulher mais influente do mundo da moda, com ganhos anuais de cerca de um milhão e seiscentos mil euros e que ocupa o 39.º lugar no ranking da revista Forbes para as mulheres mais poderosas de 2014. Foi da sua cabeça que nasceu a Vogue Fashion Night Out, como forma de fomentar o comércio em Nova Iorque, numa altura em que a cidade enfrentava uma profunda crise económica – uma iniciativa que actualmente acontece em mais de 20 cidades do mundo, incluindo Lisboa. Mais, Anna Wintour terá sido responsável pela ida de Marc Jacobs para a Louis Vuitton e de John Galliano para a Dior. Diz-se que uma opinião sua pode construir ou destruir a carreira de um designer. “Ela é honesta, diz o que pensa. Sim é sim e não é não”, conta Karl Lagerfeld, amigo e director criativo da Chanel, a marca que Wintour mais vezes usa.

Apesar disso, a verdade é que, até ao lançamento, em 2006, do filme O Diabo Veste Prada, baseado no livro escrito por Lauren Weisberger, no passado assistente pessoal de Wintour, a editora da Vogue era um nome relativamente desconhecido para aqueles que não acompanhavam o mundo da moda. Mas a terrífica personagem interpretada por Meryl Streep, aquela mulher seca e áspera que fazia a vida negra a todos os que a rodeavam, sobretudo à sua assistente (interpretada por Anne Hathaway), suscitou a curiosidade de todos aqueles que viram o filme. Queriam saber se a personagem Miranda Priestly existira mesmo. E, de repente, o nome Anna Wintour estava na boca do mundo. 'Nuclear Wintour', como é conhecida em alguns meandros, não tentou contrariar a imagem. Bem pelo contrário. Assistiu à estreia do filme vestida de… Prada.

Porém, a proximidade dos 65 anos parece ter amenizado a mulher dos óculos escuros e corte de cabelo austero. Em Agosto, aceitou o desafio da filha – a propósito da acção de angariação de fundos para a ALS – e permitiu que os membros mais novos da sua família lhe despejassem vários baldes de água gelada no sempre imaculado cabelo. Dois meses mais tarde, protagonizou outro vídeo surpreendente, feito para o site Who What Wear. Durante dois minutos faz revelações tão variadas como que costuma acordar às 5h, que tem fobia a aranhas, que não bebe álcool, que odeia horóscopos e adora ténis, que nunca tirou uma selfie e que o seu guilty pleasure é ver a série Homeland. Afinal, ela é mortal como nós. 

raquel.carrilho@sol.pt