Presunção de imunidade

A presunção de inocência é um dos pilares do Estado de Direito e significa que nenhum cidadão pode ser culpado de um crime antes de ser julgado e provada efectivamente a sua culpa. Mas assistimos hoje, e não apenas em Portugal, à tentativa de substituição e subversão desse princípio por um outro: o da presunção…

Isso quer dizer que um número crescente de pessoas, devido à relevância da sua posição na sociedade, ao poder institucional, político ou económico do cargo que exercem, serão tentadas a considerar-se imunes às suspeitas, aos indícios ou até às provas que poderão envolvê-las em comportamentos condenáveis pela lei. Por outras palavras, as redes de poder e influência funcionariam como uma garantia de protecção e impunidade que colocaria essas pessoas acima do cumprimento dos preceitos legais e éticos das respectivas funções. 

Que explica, em larga medida, o caso BES – o mais grave da história económica do país nas últimas décadas – ou o recente caso dos vistos gold – inédito, pela sua extensão e conexões, entre o alto funcionalismo público português durante o actual regime democrático – se não essa muralha protectora de procedimentos cobertos pela imunidade e impunidade, atrás da qual se refugiaram figuras destacadas da banca e dos próprios serviços do Estado?

Como é que essas personagens, aparentemente convencidas da inércia e impotência dos órgãos judiciais ou admitindo a hipótese inverosímil de poderem pairar numa nuvem inatingível pelo escrutínio público, se terão atrevido a ir tão longe na degradação da integridade pessoal e da confiança profissional que, pelas suas funções, deveriam inspirar junto da sociedade? 

“T ous pourris”, todos podres: eis a expressão sumária que se tornou corrente em França para invectivar as elites políticas e económicas do establishment. Uma generalização cultivada nos círculos do populismo justiceiro e da Frente Nacional de Marine Le Pen, mas que contamina camadas sociais cada vez mais vastas devido às crispações motivadas pela crise.

Felizmente, não temos por enquanto em Portugal movimentos agregadores dessas perigosas generalizações demagógicas, apesar das tentações populistas que vão singrando na nossa sociedade. Mas, chegados a este ponto, com o cruzamento de casos como os do BES e dos vistos gold, seria de nos perguntarmos como é que um Marinho Pinto não se transformou ainda numa Marine Le Pen ou outra figura da mesma estirpe. 

Marinho, apesar do seu frenesim populista, é herdeiro de uma tradição democrática e não autoritária. No entanto, sendo a natureza inimiga do vazio, este poderá vir a ser ocupado por quem, em desespero de causa (e de votos), se candidate a justiceiro de serviço – nos subterrâneos da direita ou da esquerda mais extremistas. Os ingredientes tóxicos estão aí, à mão de semear. E seriam provavelmente uma fonte de contágio irremediável se o sistema de Justiça não começasse a revelar-se mais atento e actuante.

O descalabro do BES e o estratagema viscoso dos vistos gold – que trouxe à superfície toda uma rede de gananciosas influências disseminadas no aparelho do Estado – foram favorecidos por um clima de ‘salve-se quem puder’ e degenerescência das instituições. Com as fracturas expostas da austeridade e da depressão que deixaram o país exangue, o Governo viu-se reduzido a um funcionamento em piloto automático, ao sabor das intempéries e inépcias (não apenas na Educação e na Justiça).

Os apelos do CDS e do PSD à remodelação governamental, aproveitando o pretexto comprometedor da demissão do ministro Miguel Macedo, mostraram-se manifestamente deslo- cados e tardios quando o que já está em causa é a própria autoridade do Estado. A cobrança coerciva à Galp e à REN das contribuições fiscais em falta – por declarada recusa dos seus dirigentes – é o último exemplo de como essa autoridade anda pelas ruas da amargura. 

Foi neste ambiente deletério que o princípio da inocência pôde ceder ao princípio da imunidade – e da impunidade.

Num Estado esvaziado do seu papel regulador e estratégico, por cegueira e preconceito ideológico que extremaram os campos do novo-riquismo ultraliberal do mercado e o velho fantasma do centralismo estatista, como se nada houvesse como alternativa, o Governo de Passos Coelho tornou-se um náufrago à deriva. E arrastando com ele o Presidente da República, que perdeu definitivamente a voz para comentar o último escândalo do regime.