Michael Cunningham: ‘A Rainha da Neve é uma fábula sobre o desespero’

Um dos mais destacados romancistas americanos tece uma fábula em que George W. Bush surge como a Bruxa Má e Obama como o Príncipe Encantado.

A Rainha de Gelo narra a história de dois irmãos, Barrett, trinta e muitos anos, gay, um doutorado empregado numa loja de roupa e Tyler, já nos 40, músico cocaínomano à espera do sucesso, mas também da mulher deste, Beth, que enfrenta um cancro. Como surgiu?

De início achei que seriam dois romances. Estava interessado na ideia de uma pessoa sem religião ou sistema de crenças ver algo inexplicável. E também queria contar a história de alguém que toma drogas. Metade da população toma drogas e no entanto parece haver apenas uma história: és fraco, um drogado, estás a tentar escapar da realidade e vais acabar morto num beco com uma agulha no braço. Mas conheço pessoas que tomam drogas duras e sei que a realidade vai além disso. Queria contar uma história mais complexa sobre a relação entre as pessoas e as drogas. Até que percebi que as duas ideias podiam fazer parte do mesmo romance: um homem que não está à procura de uma visão e tem uma e um outro homem que através do consumo de drogas procura desesperadamente uma visão que não chega. 

Vai buscar o título a uma fábula de Hans Christian Andersen. Mas o romance não a recria. O que lhe interessou?

O título: gosto da palavra snow e da palavra queen (o título original é The Snow Queen). Neve é um termo para cocaína, queen é um termo, algo insultuoso, para um homem gay. E há um aspecto na história de Andersen que me interessa, e uso no romance, um cisco de gelo no olho. É uma fábula sobre o desespero. 

Beth tem um cancro no fígado bastante avançado. Porque quis escrever sobre um tema tão pesado? 

Habitualmente não baseio as minhas personagens em pessoas que conheço. Mas neste caso o Tyler é inspirado num homem que conheço – daí dizer que conheço pessoas que consomem drogas – tal como Beth se baseia numa mulher que conheço. Tem trinta e poucos anos e um cancro no fígado e no cólon avançado. Como romancista não só uso o que me é dado como, por vezes, o mundo me mostra algo impossível de ignorar. O meu amigo que consome heroína trouxe esta rapariga uma noite a minha casa. E ela, amorosa, diz-me que está a fazer quimioterapia e tratamentos alternativos, mas também diz: 'Por que não hei-de tomar heroína?'. E realmente… O que vai acontecer? Vai-se viciar? E diz-me que há tanto tempo que se sente como a rapariga que está a morrer que não sabe como lidar com o facto de estar a melhorar. Mais tarde nessa noite estávamos ali na sala, com a neve a cair lá fora, com ela enrolada numa manta, uma agulha no braço, e pensei na Anna Karenina na plataforma do comboio. Envolvia-a com o braço, amparando-a, e foi aí que pensei: há mais que uma versão da história sobre as pessoas que consomem drogas. 

Tal como este, quase todos os seus livros versam sobre a família. Porquê?

Não é algo planeado. Mas penso que este meu interesse relaciona-se com o facto de eu ser um homem gay que, até agora, sobreviveu à epidemia de sida, mas estava em Nova Iorque quando tudo começou. Pessoas morriam por todo o lado. Alguns destes rapazes ligavam aos pais: 'Tenho duas coisas para vos contar: sou gay e tenho sida'. Alguns pais limitavam-se a desligar o telefone. E nós tínhamos que fazer alguma coisa. De repente a tua família deixa de ser a tua mãe, o teu pai e o teu irmão e passa a ser composta por duas lésbicas, uma drag queen e um gay de calções curtos dourados. E éramos como qualquer família: comprávamos comida, pagávamos as contas, levávamos as pessoas aos hospital, tratávamos do enterro e… discutíamos. Não era uma família melhor. Mas era uma família tão forte e tão válida como outra qualquer. Estas famílias alternativas também pertencem aos livros. 

Uma das personagens principais é gay. Mas não há qualquer história à volta disso. Já não lhe interessa explorar os direitos gay? 

Hoje toda a gente conhece alguém que é gay. E não faz diferença nenhuma. Além disso, há muita coisa a acontecer. Nem tudo gira à volta dos direitos gay. É um tema importante mas também o é o facto de os drones estarem a devastar o Paquistão ou que a economia europeia esteja desfeita. Há muito mundo.

O romance desenrola-se durante o última mandato de Bush, que paira sob a história como uma bruxa má. O que lhe interessou? 

Temos uma pequena maioria da população americana a reeleger um homem que destruiu a economia e declarou guerra ao país errado. E quatro anos depois, a mesma América, um país devastado pela racismo, elege um afro-americano, provavelmente cem vezes mais inteligente que George W. Bush. Decidi que o romance iria começar naquela que, para muitos de nós, foi a altura mais desesperançada na política americana e acabar numa altura em que havia esperança numa revolução. Não acho que um romance tenha que ser apenas político. Mas leio muitos romances norte-americanos que parecem imaginar que não faz diferença nenhuma quem está no poder. É difícil imaginar um romancista europeu, africano ou sul-americano escrever uma narrativa na qual o sistema político e cultural não interesse de todo. Se, enquanto cidadãos, desistirmos da nossa acção política, a realidade será pior.

rita.s.freire@sol.pt