Do que nos livrámos!

Em 2008, o BPN foi nacionalizado contra a vontade dos seus accionistas. Na altura, poucas vozes contrárias se fizeram ouvir, até porque a nacionalização tinha o aval do governador do Banco de Portugal, Vítor Constâncio. Após este acto, o Governo designou como administrador do BPN Francisco Bandeira, um homem da confiança pessoal de Sócrates. 

Entretanto,  no ano seguinte, na sequência de convulsões internas, o BCP seria 'governamentalizado', entrando para a administração Carlos Santos Ferreira e Armando Vara, notórios amigos de Sócrates.

O BES, por seu lado, era governado por Ricardo Salgado, cuja cumplicidade com Sócrates se tornou a partir de certa altura evidente, ao ponto de – quebrando a sua proverbial contenção nas referências ao poder político – elogiar por diversas vezes o primeiro-ministro em público. 

Quanto à CGD, era tutelada pelo Governo.

Em conclusão, exceptuando o BPI (de Fernando Ulrich), a partir de 2009 toda a banca ficou 'nas mãos' de Sócrates ou dos seus amigos: CGD, BCP, BPN e BES – para não falar do BdP, onde pontificava Constâncio.

Na comunicação social a situação também não era famosa.

No início do consulado de José Sócrates, o grupo Controlinvest (DN, JN e TSF), de Joaquim Oliveira, foi logo identificado pelo primeiro-ministro como um potencial aliado (até pela sua dependência da banca).

O grupo Cofina (Correio da Manhã e Sábado), de Paulo Fernandes, também se mostrava cauteloso nas referências ao Governo. 

O grupo Impresa (SIC, Expresso e Visão) mantinha-se na expectativa. 

O grupo RTP (RTP e RDP) pertencia ao Estado e mostrava-se dócil.

O grupo Renascença não se metia em sarilhos.

Restava o quê? 

A TVI e o Público – este dirigido por José Manuel Fernandes, considerado por Sócrates persona non grata.

O SOL só apareceria mais tarde.
 
Quando rebenta o caso Freeport, em 2009, as coisas vão aquecer. 

A TVI estabelece um acordo com o SOL para a investigação daquele tema e torna-se para Sócrates um inimigo declarado. 

Manuela Moura Guedes, a pivô do jornal televisivo de sexta-feira (que antecipa as notícias do Freeport), é o primeiro alvo a abater – e Sócrates empenha-se em afastá-la por todos os meios; mas tal não se mostra fácil, dado ser mulher do director da estação, José Eduardo Moniz. 

Em desespero, Sócrates tenta usar a PT para comprar a TVI, mas o negócio borrega.

Também há tentativas para fechar o SOL, através do BCP (que era accionista de referência do jornal), comandadas por Armando Vara. 

No que respeita à Impresa, apesar de não fazer grande mossa ao socratismo, sofre vários ataques, designadamente por parte de Nuno Vasconcellos e Rafael Mora, líderes da Ongoing e próximos de Sócrates, que tentam encostar Balsemão à parede.

Finalmente, sem se perceber porquê, Belmiro de Azevedo aceita a saída de Fernandes da direcção do Público, e Moura Guedes e Moniz deixam a TVI (indo este estranhamente para a Ongoing…).

O SOL fica isolado – e só se salvará por ser adquirido por accionistas não envolvidos na política interna.

Visto o controlo substancial de Sócrates sobre a banca e a comunicação social, olhemos para o poder político.

Sócrates dominava naturalmente o Governo, de que era o chefe, e o Parlamento, onde o PS tinha maioria absoluta – só lhe escapando a Presidência da República.

Por isso, voltou contra Cavaco Silva todas as baterias.

O PS e o Governo tentaram tudo para implicar Cavaco no caso BPN, por deter acções do banco (embora as tenha vendido antes de ir para Belém).

Esta campanha contra o Presidente da República ressuscitaria com estrondo nas eleições presidenciais de 2011, com a cumplicidade – diga-se – de muita comunicação social.

Outro momento alto da guerra contra Cavaco foi o aproveitamento de uma gafe de um seu assessor, Fernando Lima – que tinha falado a um jornalista sobre a possível existência de escutas a Belém -, para tramar o Presidente.

Usando uma técnica nele recorrente, Sócrates armou-se em vítima, virou os acontecimentos a seu favor e tentou destruir Cavaco Silva, acusando-o de montar uma cabala. 

Outra vez com a ajuda de muitos jornalistas, os socratistas exploraram o caso à exaustão e o assunto foi objecto de intermináveis debates televisivos – onde se chegou a dizer que o PR tinha de renunciar ao cargo!

A campanha não matou Cavaco mas fez mossa, fragilizando o único bastião que não era dominado por Sócrates na esfera do poder político.

Talvez hoje alguns jornalistas percebam melhor o logro em que caíram.

Passando finalmente à Justiça, Sócrates tinha no procurador-geral da República, Pinto Monteiro, e no presidente do Supremo Tribunal de Justiça, Noronha do Nascimento, não propriamente dois cúmplices, como alguns disseram, mas duas pessoas que pareceram sempre empenhadas em protegê-lo, fossem quais fossem as razões. 

Nesta área, Sócrates contava ainda com um bom aliado: Proença de Carvalho, pessoa influente nos meios judiciais (incluindo junto de Pinto Monteiro).

E teve sempre o apoio do bastonário da Ordem dos Advogados, Marinho e Pinto.

Portanto, também aqui, o primeiro-ministro estava bem acolchoado.

Governo, Parlamento, Justiça, comunicação social, banca: Sócrates controlava os três poderes do Estado – executivo, legislativo e judicial – e estendia os seus tentáculos ao quarto poder (os media) e ao poder financeiro (os bancos).

Talvez muita gente não se tenha apercebido na época deste cenário aterrador. 

Mas olhando para trás – e sabendo-se o que hoje se sabe – temos noção do perigo que o país correu: um homem sobre o qual pesam suspeitas tão graves chegou a deter um poder imenso, que se alargava a todas as áreas de influência.

Só de pensar nisto ficamos assustados – e é muito estranho que alguns dos que privavam com ele não se tenham apercebido de nada.

Foi lamentável ver pessoas de bem – como Ferro Rodrigues ou Correia de Campos – fazerem tão tristes figuras, defendendo-o encarniçadamente até ao fim.

É certo que, como bem disse José António Lima, a democracia venceu-o, afastando-o do cargo.

Mas também foi a democracia que permitiu que um homem como este chegasse a reunir um poder tão grande em Portugal.

Isso mostra a vulnerabilidade do sistema democrático.

P. S. – No caso dos vistos gold, logo a seguir às detenções, deu-se por adquirido que os arguidos eram culpados, considerou-se “inevitável” a demissão de Miguel Macedo, e António Costa disse que o Governo ficava “ligado à máquina”. Uma semana depois, as mesmas pessoas contestam a prisão de Sócrates, invocam a “presunção de inocência” e acham “absurdo” falar na hipótese de demissão de António Costa. Palavras para quê?  

jas@sol.pt