Contos imorais…

Foi necessária a detenção, para interrogatório judicial, de um ex-primeiro-ministro, para acudirem aos media, de supetão, as virgens ofendidas, alegando os efeitos potencialmente perigosos para o regime da mediatização da Justiça. Aparentemente, antes de Ricardo Salgado e de José Sócrates comparecerem diante do juiz de instrução criminal, ainda ninguém dera por isso. Distracção imperdoável.

Quem ler alguma imprensa – e acompanhar alguns programas, com conhecidos animadores de serviço -, há-de estranhar o coro dos indignados, postulando uma ética e uma moral que nunca tiveram.
Há muito que se conhece o mecanismo (perverso…) das fugas cirúrgicas de informação, com ecos garantidos no espaço interminável dos telejornais.
Esse facto nunca incomodara os politólogos e outros astros que pastoreiam as almas no firmamento mediático. E, no entanto, de quantas vítimas dos media podemos falar, julgadas sumariamente na praça pública?
Sobejam os exemplos onde a presunção de inocência foi substituída pela presunção de culpa.

Vieram, depois, as teorias de conspiração, por ter coincidido a detenção de Sócrates com a eleição de António Costa para secretário-geral do PS, e em vésperas do congresso socialista.
De facto, a festa da entronização do novo líder ficou irremediavelmente estragada. 
A reabilitação de Sócrates e dos seus prosélitos seguia em bom ritmo, à mistura com a fanfarra das medalhas e condecorações, preliminar ao oficio exaltado de Ferro Rodrigues, no seu panegírico parlamentar.
Perante o desfecho e a pesada prisão preventiva decretada no Campus da Justiça, envolvendo Sócrates e dois outros arguidos do seu círculo, o PS e António Costa ficaram assombrados. Precisam de mudar de vida. E devem rezar para que ninguém na maioria se lembre de reclamar eleições antecipadas…
Ao contrário, porém, do que proclamam os novos 'arautos da desgraça', atónitos com a sorte dos 'poderosos' que bajulavam, o regime não está em perigo. Revigora-se. 
Convirá recordar, de caminho, no quadro de uma esquerda atarantada – por entre o drama do PS e o colapso do Bloco – que Sócrates, enquanto primeiro ministro, se esforçou por amansar a Justiça e asfixiar as vozes incómodas nos media. A TVI e este jornal são disso testemunho. Não o conseguiu. 

Nesta fase atribulada da vida portuguesa, propícia a todos os fantasmas, não foi só José Sócrates que perdeu a imunidade que trazia há muito colada à pele. Outros perderam a vergonha.
Mas o fluxo vertiginoso de acontecimentos subalternizou as suas histórias exemplares. 
Alinham-se casos surpreendentes, como os da REN e da GALP , que decidiram não pagar os cerca de 50 milhões devidos pela contribuição extraordinária sobre o sector energético, alegando ilicitudes que não especificaram. 
O 'não pagamos', que foi um slogan querido das esquerdas, reapareceu, arrogante, adoptado por empresas de rosto respeitável, geridas por nomes não menos respeitáveis, como Rui Vilar ou Ferreira de Oliveira. 
Picante adicional: da administração executiva da Galp Energia faz ainda parte Costa Pina, que foi secretário de Estado do Tesouro e das Finanças nos dois Governos de Sócrates… 
Um 'braço-de-ferro' com o Governo, impróprio de empresas e dirigentes responsáveis. É imoral. 

Não menos imoral foi a aprovação pelo PSD e PS, em sede de comissão parlamentar, da reposição das subvenções vitalícias para políticos, com rendimentos superiores a dois mil euros, seguida de um recuo atrapalhado. Proponentes, os inefáveis Couto dos Santos e José Lello, habituados aos lóbis bem oleados e aos manobrismos paroquiais.
A saudável rebelião que houve na bancada do PSD forçou os autores a retirarem a proposta. Contas por alto, as subvenções vitalícias custam ao Estado, anualmente, uns módicos 7 milhões de euros e são pagas a mais de três centenas de antigos titulares de cargos políticos.
O recuo social-democrata pôs termo a uma comédia de maus costumes. Passos Coelho e António Costa entenderam-se no pior. 

Imoral, ainda, foi a RTP assegurar, em concorrência com os operadores privados, as transmissões, em exclusividade, dos jogos da Liga dos Campeões por três anos, contrato já aceite pela UEFA, com carácter vinculativo.
Alega a administração, num comunicado surreal, sem corar, que dispõe de «estudos que comprovam que 94% dos seus telespectadores e ouvintes consideram o futebol de qualidade um produto representativo da excelência do serviço público».
Imagine-se que os 'estudos' promovidos pela RTP apontavam para programas do género da Casa dos Segredos. Iriam disputar o contrato à TVI?
Perante o exposto, e como um dia escreveu Saramago, «este país preocupa-me, este país dói-me (…). De vez em quando, como somos um povo de fogos de palha, ardemos muito, mas queimamos depressa». Tinha razão.