Já nos saiu a sorte grande (só que ainda não nos apercebemos disso)

A insatisfação: penso que, se há uma característica que define o ser humano, é essa. Querer sempre mais.

Vou dar um exemplo. Na época de 1993-1994, o Benfica foi campeão nacional com Toni como treinador. Mas para os benfiquistas isso não era suficiente. Queriam que o clube recuperasse o prestígio lá fora e, para eles, Toni não tinha dimensão para liderar um 'Benfica europeu'. Com base nessa premissa, o presidente despediu Toni e contratou Artur Jorge, que vinha do Paris Saint Germain, para o seu lugar. O resultado foi desastroso. O Benfica entrou num dos períodos mais negros da sua história. Mas isso era algo que os adeptos e a direcção não podiam prever, porque acreditavam que com a mudança as coisas só podiam melhorar.

Todos nós, sempre que projectamos o que as nossas vidas poderiam ser, olhamos para cima: imaginamo-nos a viver numa casa maior e mais bonita, com um salário melhor, usufruindo de mais tempo de lazer, etc. Poucas pessoas se sentem gratas por aquilo que já têm e menos ainda se imaginam numa situação pior do que a actual. Normalmente, só depois de acontecer uma desgraça ouvimos dizer: 'Eu tinha uma vida tão boa e não dava valor a isso'.

Quando falamos de sonhos, de fantasias, de acontecimentos que podem mudar uma vida, há uma palavra mágica que aparece de forma recorrente: euromilhões. As pessoas acreditam que esse surplus financeiro é aquilo que lhes falta para atingirem uma felicidade completa. E que daí em diante viverão de acordo com as suas aspirações e da forma que merecem.

O que a maioria das pessoas desconhece é que, de certa forma, já lhes saiu o bilhete premiado. O físico norte-americano Paul Davies, que ganhou um dos mais importantes prémios de ciência e tem um asteróide com o seu nome, escreveu há tempos um livro chamado O Jackpot Cósmico: Por que o Universo É Perfeito para a Vida. Quem são os beneficiários desse jackpot? Isso mesmo: somos nós. E também já foi lembrado justamente que os humanos ganharam um segundo euromilhões: o da biologia. Cada um de nós podia ter nascido caracol, galinha de aviário, peixe ou até alforreca. Mas não: calhou-nos na rifa sermos o mais inteligente dos animais e, creio, aquele que vive com maior conforto.

Dentro dos humanos, por sua vez, também ocupamos uma posição privilegiada. Os telejornais passaram recentemente imagens que me deram que pensar: emigrantes africanos que conseguiram franquear as fronteiras europeias e entrar em Espanha dançavam, pulavam, esbracejavam e festejavam como loucos. Para eles, viver na União Europeia é um privilégio, um luxo – mesmo que venham a ter profissões muito duras. Mas nós, como nascemos com esse privilégio, não lhe damos importância. Pelo contrário, preferimos falar pesarosamente da crise e escarafunchar os problemas da Europa.

Tenho amigos que jogam semanalmente (e até duas vezes por semana) no euromilhões. Olhando para as suas vidas e comparando-as com as dos menos favorecidos – por exemplo, aqueles que vivem em países subdesenvolvidos -, só me ocorre dizer-lhes uma coisa: 'Parem de jogar e desfrutem do prémio. Já vos saiu a sorte grande, só que ainda não se aperceberam disso'. 

jose.c.saraiva@sol.pt