Franco Maria Ricci, uma lenda em Lisboa

Quando o vemos circular pela exposição, de aparência frágil e com passos curtos, dificilmente imaginamos que este homem de 77 anos aprecia carros desportivos e já foi uma presença assídua nas revistas do jet-set italiano. Franco Maria Ricci caminha lentamente – de vez em quando pára e olha mais demoradamente para alguma peça, como se…

Franco Maria Ricci, uma lenda em Lisboa

Finda a exposição, as obras regressarão a casa, onde está a ser finalizado o museu que vai acolher a colecção privada do editor, composta por meio milhar de peças. O edifício encontra-se no centro de um gigantesco labirinto (feito com diferentes espécies de bambu), que já foi certificado pelo Guinness como o maior do mundo. O comissário José de Monterroso Teixeira define a exposição de Lisboa como “um ensaio” para o novo museu.

Desafiado a destacar uma peça, Franco Maria Ricci responde com diplomacia: “É difícil… Seria como pedir a um pai para dizer qual o filho de que mais gosta”. No entanto, quando dali a pouco lhe pedimos para se deixar retratar ao lado da sua obra favorita, dirige-se para junto de uma pintura que representa Cristo a fazer o gesto da bênção. Trata-se da peça mais antiga da colecção (data de cerca de 1500) e foi pintada por Fillipo Mazzola, natural de Parma e pai do célebre ‘Parmigianino’ (o artista favorito de Ricci, mas do qual não há pinturas no mercado), autor de obras emblemáticas do Maneirismo como a ‘Madonna del Collo Lungo’ (Nossa Senhora do Pescoço Comprido).

Há uma jovem admiradora que aproveita a ocasião para também tirar uma fotografar junto do coleccionador. Não é a única pessoa que quer fazer uma selfie com o italiano e há uma razão simples para isso: Franco Maria Ricci é uma lenda.

Nascido em Parma no seio de uma família aristocrática, já lhe chamaram ‘o Papa das edições’. Mas não foi por aí que u começou. “A sua formação é em Geologia”, explica José de Monterroso Teixeira. Ricci chegou a trabalhar para a Gulf Oil, mas nos anos 60 deixou o emprego para abrir uma oficina de artes gráficas em Parma. “Reeditou uma obra rara, o Manual Tipográfico de Giambattista Bodoni, e ganhou imenso dinheiro”, explica Monterroso Teixeira. O editor italiano gosta de contar que estava previsto o livro custar 50 dólares, mas, suprema ironia, um erro tipográfico fez com que o preço marcado tivesse um zero a mais. Mesmo a 500 dólares, os 400 exemplares esgotaram. “Era tão novo que quando fui a Nova Iorque encontrar-me com o director da Biblioteca Pública de Nova Iorque, ele me perguntou onde estava o meu pai”, contou o editor em entrevista a um jornal de Parma.

Em 1982 Ricci fundou a sua revista, a FMR (o título replica as iniciais do fundador, que em francês se lêem ‘éphémère’ – efémero), considerada por Jacqueline Kennedy “a mais bela revista do mundo”. Acabou por vender o seu império editorial em 1998 por 10 milhões de euros para realizar o sonho de construir o labirinto que agora se ergue na sua propriedade a 60 km de Parma.

“Não é possível compreender o legado de Franco Maria Ricci sem ter em conta a sua relação com Jorge Luis Borges”, declara Monterroso Teixeira. “Eles conheceram-se quando Ricci foi a Buenos Aires de propósito para se encontrar com Borges, que era na altura director da Biblioteca Nacional. Embora fosse cego, Borges diz que sentiu uma luz muito forte, teve uma espécie de epifania. Depois o Borges foi a Itália a convite do Franco Maria Ricci e organizou a colecção de literatura fantástica, a Biblioteca de Babel. O labirinto de Parma é uma reminiscência dessa relação”. Quando Ricci expôs a sua ideia de construir o maior labirinto do mundo, Borges tê-lo-á desencorajado, dizendo que o maior labirinto do mundo já existia – era o deserto. Mas Ricci não lhe deu ouvidos.

Pedras, ossos e carne viva

“Franco Maria Ricci é um clássico”, diz José Monterroso Teixeira parado num espaço “inicial e iniciático” da exposição. Pressentimos, no entanto, que o comissário da exposição só está a dizer meia verdade, porque, além de um grupo de bustos em mármore, vemos na sala três pinturas modernas pouco convencionais. “Mas Franco Maria Ricci é também um anti-clássico, um homem que aprecia as rupturas e a transgressão”, complementa o comissário. “A sua revista, que dedicou muita atenção às culturas não ocidentais, é uma prova disso”.

A visita guiada mostra a predilecção do coleccionador pelo Maneirismo, um período em que os artistas subverteram o cânone do Renascimento, fazendo figuras anatomicamente desproporcionadas. Um dos exemplos é uma cópia de uma obra de Parmigianino que representa Cupido, a divindade do Amor, proveniente da corte de Rudolfo II, o imperador Habsburgo que se estabeleceu em Praga, grande mecenas e praticante de alquimia.

Ao lado, numa sala que faz lembrar um gabinete de curiosidades, há um conjunto de pequenas pinturas de caveiras. “Já ouvi aí dizer que faz lembrar a capela dos ossos, na igreja de São Francisco, em Évora: ‘Nós ossos que aqui estamos por vós esperamos’”, cita Monterroso. “Estas pinturas, a que se chama vanitas – vaidade –, servem precisamente para nos levar a reflectir acerca do carácter transitório da vida”. E o que interessa mais a Ricci, esse tipo de reflexão piedosa ou o lado mais macabro destas pinturas? “É uma boa questão. Por que não vamos perguntar-lhe?”, sugere o comissário. “É sobretudo a vertente estética que me interessa”, esclarece Franco Maria Ricci. E aponta para a primeira obra deste conjunto que adquiriu: não se trata propriamente de uma caveira, mas de uma cabeça decepada e em processo de decomposição. Depois, o coleccionador chama a atenção para uma pintura com duas faces: “Deste lado, o retratado está vivo; do outro lado, está morto”.

Se aquele núcleo remete para a fragilidade da carne, no seguinte há um conjunto de bustos em mármore que lembram a permanência da pedra. Entre eles, destaca-se um retrato do Papa Clemente X, de 1675. O seu autor, o italiano Gian Lorenzo Bernini, é considerado por muitos o maior escultor de sempre. “Não sei se conhecem os documentários de Simon Schama”, nota Monterroso.”Ele é sobretudo um grande comunicador. Quando está a descrever o Êxtase de Santa Teresa, de Bernini, diz o seguinte: ‘It’s flesh!’. Nas mãos de Bernini a pedra parece transformar-se em carne”. Já em 1700 François Raguenet dizia algo muito parecido acerca do escultor italiano: “Ele tratava o mármore com tal suavidade que parecia cera ou até mesmo carne”. Bernini dizia que conseguia captar o carácter dos retratados fazendo esboços rápidos enquanto os seus modelos desempenhavam as tarefas do quotidiano – embora depois ao esculpir a pedra nunca olhasse para esses esboços, para a obra não perder a ‘frescura’.

A exposição prolonga-se pela biblioteca do museu adentro. “É uma oportunidade para dar a conhecer este espaço magnífico a um público mais alargado”, considera António Filipe Pimentel, o director do Museu de Arte Antiga. Ali, são mostradas lado a lado uma primeira edição da Encyclopédie, de Diderot e D’Alembert, e a réplica rigorosa de Franco Maria Ricci. O exemplar original, editado entre 1751 e 1780, é um dos tesouros da biblioteca do museu. Já os livros de Franco Maria Ricci, publicados na década de 70, são obras de arte por direito próprio. Uma edição completa custa à roda de cinco mil euros – um valor elevado mas ainda assim muito distante daquele que atinge o ex-líbris da casa italiana: Michelangelo. La Dotta Mano é o livro novo mais caro do mundo. Cada um dos 99 exemplares, quando saiu, custava 100 mil euros. E, pormenor curioso, vinha com garantia de 500 anos. É caso para dizer que de efémero estes livros não têm nada.

jose.c.saraiva@sol.pt