À boleia, com Soares

“Parece Veneza”. A observação do meu interlocutor afigurava-se completamente excêntrica ali, no litoral de Cochim, Sul da Índia. Eu acabava de ser também confrontado com a inverosímil semelhança, mas não fora capaz de verbalizá-la, temendo talvez o ridículo. Pelo contrário, Mário Soares, sentado ao meu lado num barco fluvial, atrevera-se espontaneamente a associar aquela paisagem…

Quando penso nas imagens que guardei de Soares, ao longo de quatro décadas de relações pessoais e jornalísticas intermitentes, esse momento colhido na sua viagem presidencial à Índia em 1992, que eu reportava como enviado do Público, aparece-me estranhamente como um dos mais sugestivos. Soares não receara exprimir uma comparação aparentemente absurda entre os canais de Veneza e de Cochim tal como não temeu desafiar as ortodoxias de ideias e opiniões ao longo de uma vida de 90 anos.

Discordei e continuo a discordar dele, por vezes com irritação, mas nunca consegui resistir a uma empatia profunda com esse desprendimento de homem livre que ele encarnou como nenhuma outra personagem marcante da nossa democracia.

Apesar de rodeado por tantos cortesãos – “amigos e não amigos” como ele disse, suspeito que maliciosamente, no recente almoço de aniversário – e de não escapar ao apelo da vaidade humana ou ao conceito majestático em que se tem, Soares conseguiu manter-se sempre fiel à paixão instintiva da liberdade e da tolerância.

Sinal dos tempos: é precisamente quando as suas opiniões se revelam mais desconcertantes e agressivas – ou até inspiradas por estados de alma e humor menos compatíveis com a linha essencial do seu percurso – que se assiste a uma celebração de unanimismo hipócrita, como se a idade do aniversariante o tornasse uma inofensiva figura de museu de cera, facilmente recuperável pela corte dos tais “amigos e não amigos”.

A minha memória de Soares conduz-me aos tempos do PREC, quando Portugal se via confrontado com perigosas tentações totalitárias de sinal oposto. Ainda jovem repórter no Expresso, foi à boleia no carro que transportava Soares que percorri as estradas ainda esburacadas do país nas campanhas eleitorais para a Constituinte e as duas ou três legislativas seguintes.

Era uma situação bizarra e, teoricamente, com riscos óbvios para a distância que um jornalista deve manter em relação aos acontecimentos que relata. Como não tinha carta de condução, socorri-me desse expediente de que Soares foi obviamente cúmplice, expondo-me aos perigos de uma excessiva proximidade com o protagonista das reportagens, embora também pudesse beneficiar dela como observador privilegiado.

Esse jogo arriscado constituiu uma das minhas mais fecundas aprendizagens do jornalismo – e da liberdade. Ora, essa aprendizagem devo-a, em grande parte, à forma como Soares se prestou ao jogo. Apesar das tensões geradas pelo tom não oficioso das minhas reportagens junto do staff de Soares e do seu círculo familiar, consegui levar o exercício até ao fim.

E, mesmo quando senti que essa preocupação de imparcialidade  jornalística  podia  tornar-se  excessivamente  incomodativa e  me  propus  suspender  as  boleias, recorrendo a transporte alternativo, foi Soares quem me convenceu do contrário, talvez porque se divertisse com a minha companhia e a considerasse um desafio à sua própria capacidade de tolerar as minhas supostas 'irreverências'.

Com o país ainda radicalizado entre dois extremos, pude observar de perto como Soares conseguia gerir os apelos à pacificação da sociedade e à democracia. A sua visceral coragem física, raiando por vezes a imprudência, levava-o a criar um ambiente que neutralizava os sinais de hostilidade mais evidentes, como verifiquei no Alentejo ou no Norte. Dir-se-ia que os ventos mais quentes do PREC não sopravam sobre a campanha conduzida pelo líder do PS – simplesmente porque ele estava disposto a enfrentá-los.

Em Rio Maior, onde o movimento das 'mocas' não se limitava a uma reacção anticomunista, o seu staff receava os riscos de confrontação física se Soares se atrevesse a percorrer o centro da povoação. Perante a sua impaciência crescente, decidi infringir uma das regras da distância jornalística e ofereci-lhe a minha companhia.

Ele lançou-me um “Venha daí!” e caminhámos em direcção às ruas consideradas mais perigosas, seguidos pelos membros da comitiva. Não fomos acolhidos nem com hostilidade nem com entusiasmo. Mas a prova estava feita: não havia, não há, zonas interditas em democracia. É a mensagem essencial que ainda hoje devemos reter de Mário Soares.