Retrato de família

Há um traço comum nas desventuras de alguns actores que ocuparam a boca de cena, por entre luzes e sombras. Ricardo Salgado, João Rendeiro e José Sócrates parecem não perceber o que lhes aconteceu. E nomeiam presumíveis culpados, como se eles fossem meras vítimas das circunstâncias.

Com sobranceria, distanciam-se dos 'danos colaterais' do naufrágio. Exprimem-se como se fossem intocáveis. Pelo discurso – com mais ou menos advogados de permeio -, reclamam-se perseguidos e ofendidos. Jogam sem-cerimónia em diferentes tabuleiros.
O colapso do BES é atribuído a todos – desde os mercados, ao supervisor e ao Governo -, menos ao líder histórico, herdeiro de uma instituição centenária, que lava daí as mãos e dá um passo ao lado. 
Já a falência do Banco Privado Português – cujo rescaldo está longe de extinto -, surge como um tédio entre dois livros de outro banqueiro, frequentador dos melhores salões lisboetas, para quem tudo não passou de uma 'verdadeira farsa'. Modesto, não assume, contudo, a autoria da encenação. 
Suspeito de uma longa série de trapalhadas, o ex-primeiro-ministro proclama inocência, atrai a comunicação social a Évora, enquanto se queixa do 'circo mediático'. Não há nele um gesto de contrição, tal como sempre fez na deriva que colocou o país na órbita da bancarrota. 

As novelas coincidem, assim, em não poucos pontos do guião e rivalizam na captação de audiências. À medida que se sucedem os episódios, os enredos aumentam o suspense, graças a novas revelações. 
No longo depoimento de Ricardo Salgado – esculpido pela elite de advogados e consultores em comunicação e finanças que o rodeiam – não transpareceu o menor remorso. Com uma medida altivez, disparou em várias direcções – descaridoso para o incontornável contabilista, e pródigo em alusões dúbias para quem lhe fugiu à mão, como o primo José Maria Ricciardi.
Memorialista nas horas vagas, José Rendeiro é alguém que dantes se gabava da sua apurada ciência financeira. Foi, contudo, incapaz de prever o descalabro do Banco Privado. Há seis anos, quando o banco já mergulhava a pique, teve o topete de publicar um livro, juntando não poucas notabilidades com o Testemunho de Um Banqueiro – A História de Quem Venceu nos Mercados. Viu-se. 

O BPP fechou a porta com estrondo, mas Rendeiro voltou agora a dar à estampa um grosso volume, onde aparece convertido em analista de crises. 
Num tocante testemunho ao jornal i diz: «Não descarto a minha pequeníssima quota-parte de culpa no BPP». 
Conclui, porém, que as autoridades em Portugal se recusaram a ver a realidade. De facto, terão andado distraídas, tempo demais, perante o famoso 'retorno absoluto', com a sua publicidade enganosa, baseada em depoimentos aliteratados de não poucas personalidades, convidadas a escrever sobre as virtudes do dinheiro. É pena que não sejam reeditadas em colectânea. Seria um best-seller… 
Por seu lado, e na vocação recente de epistológrafo, José Sócrates retrata a sua indignação e exaspero. Para ele, nesta fase, o «sistema vive da cobardia dos políticos, da cumplicidade de alguns jornalistas, do cinismo das faculdades e dos professores de Direito e do desprezo que as pessoas decentes têm por tudo isto». Ele, imaculado. Detido sem culpa formada.

Alijar responsabilidades tornou-se uma figura de estilo, comum às 'narrativas' de Salgado, Rendeiro e Sócrates – tecidas com omissões e meias verdades. Não se assumem, excepto para se desculpabilizarem. 
Em cada um não se pressentem vestígios de arrependimento, muito menos o assumir de erros que custaram caro – ao país e às instituições. 
Há neles um estranho autismo. Uma perda de memória. Uma versão sui generis e ritual dos factos, que é o formato da sua verdade. Premonitório, bem avisava Mário Soares em relação a Salgado: «Quando ele falar, e vai falar, as coisas vão ficar de outra maneira». Falou. Mas ficou pior do que enquanto esteve calado. 
Já Rendeiro, com mais um livro debaixo do braço, reapareceu de lâmina afiada. Mas, quando fala de si e do seu percurso, é para garantir que «não houve crime nenhum».

Seguramente, é também esse o pensamento dominante em Sócrates. E, em nome da sua defesa, além das cartas, quis dar entrevistas, talvez para alimentar a romaria, com os jornalistas de piquete à porta da prisão. 
Mas se ele ficou impedido, houve logo quem lhe tomasse o lugar. Patético, o histórico socialista António Campos não foi de meias medidas. E num arrebatamento achou que «a Justiça mandou uma bomba atómica sobre a democracia (…)». 
O baile de máscaras vai animado. À orquestra da presunção de inocência, juntou-se o coro da auto-vitimização, com solistas 'de consciência tranquila'.
A culpa, se houver, deve morrer solteira. Ou casar com o contabilista…