A oposição ao Papa que vem de dentro

É dentro da Igreja que o Papa tem coleccionado mais opositores. Para a jornalista Aura Miguel, “não se tratam propriamente de inimigos mas de pessoas que têm apreensões muito grandes em relação a algumas preferências que tem manifestado”. A vaticanista portuguesa dá um exemplo: quando Francisco chama o cardeal Kasper para introduzir o tema dos…

Foi no Sínodo da Família que essas divergências vieram mais à tona e os incómodos entre os bispos se tornaram mais evidentes. Já nos ¬trabalhos preparatórios deste encontro, e depois das declarações polémicas de Kasper, o cardeal Raymond Burke, prefeito do Supremo Tribunal da Signatura Apostólica, veio defender uma posição completamente diferente, merecendo aplausos dos católicos mais tradicionalistas, mas gerando um enorme mal-estar no Vaticano. 

Burke, que é uma das principais vozes da ala conservadora na Cúria Romana, disse não ser possível “conciliar o conceito inalterável da indissolubilidade do matrimónio com a possibilidade de admitir à comunhão quem vive numa situação irregular”. O cardeal americano considerou ainda o relatório preliminar do Sínodo – que não só abria essa possibilidade como preconizava uma maior abertura aos gays –, um “desastre total”. 

Numa entrevista dada já depois da polémica assembleia sinodal de Outubro, o cardeal Burke considerou existir “o risco” de um cisma dentro da Igreja se, até à segunda parte do Sínodo (em 2015), os bispos forem vistos a “contrariar os ensinamentos e práticas constantes da Igreja, pois estas são verdades imutáveis”. Ou seja, se continuarem a defender as opções progressistas de Kasper.

Pouco tempo depois de ter manifestado estas posições, consideradas opostas às do Papa, Burke foi transferido para um cargo na Ordem de Malta, no que foi considerado um afastamento forçado e uma represália.

Também o cardeal Gerhard Müller, Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, tem estado do lado dos que recusam uma abertura da Igreja aos recasados. Este peso-pesado do Vaticano inclui-se entre os cinco cardeais que escreveram em Outubro um livro onde refutam claramente as teses de Kasper. 

A verdade é que, apesar de Kasper reclamar para o seu lado a visão do Papa, Francisco ainda não definiu publicamente a sua posição sobre estes temas. Aura Miguel considera que o Papa não vai falar para já, porque quer que o tema seja debatido livremente e nega-se a condicionar a discussão. Mas esta falta de clarificação está a ser considerada por muitos um risco que pode sair caro à Igreja.

Inimigos estão dos dois lados: conservadores e progressistas

Para Austen Ivereigh os inimigos do Papa não são apenas os mais conservadores, estão nos dois extremos da barricada: “São os ultratradicionalistas e os ultraliberais. Tem sempre oposição destes dois sectores ideológicos, e está sempre a desafiá-los a escolher entre o Evangelho e a ideologia”. Para o especialista em assuntos da Santa Sé, “há muitos católicos que estão mais cómodos com a ideologia do que com o Evangelho”. E esses, acrescenta, “são os que mais se sentem incomodados com o discurso do Papa”.

Dentro da Igreja, há ainda outros grupos apreensivos com as posições de Francisco. Como os movimento pró-vida, que ficaram incomodados quando o Papa disse que a Igreja não podia viver obcecada com o tema do aborto e da contracepção. 

No âmbito do diálogo ecuménico e inter-religioso, Francisco também tem colhido críticas. Uma delas prende-se com a perseguição perpetrada pelo Estado Islâmico a milhares de cristãos na Síria e no Iraque e com a pouca veemência com que o Papa terá denunciado a situação. Mais recentemente, a recusa de Francisco em receber o Dalai Lama também gerou contestação.

Outra tese que tem agitado o Vaticano foi publicada há semanas num livro assinado pelo jornalista Antonio Socci. Em Não é Francisco, Socci escreve que o Papa foi eleito ilegitimamente pois durante o Conclave foram violados as normas da Constituição Apostólica Universi Dominici Gregis. Mais uma acha para a fogueira.

rita.carvalho@sol.pt