O Caravaggio de Lisboa

A 26 de Outubro deste ano, dia do meu aniversário, concedi a mim próprio um pequeno presente: uma visita à Fundação Calouste Gulbenkian, onde acabara de inaugurar a exposição A História Partilhada – Tesouros dos Palácios Reais de Espanha. O meu objectivo era ver uma obra em particular, Salomé com a Cabeça de S. João…

O quadro representa um episódio bem conhecido da Bíblia. Num banquete, o Rei Herodes Antipas (filho de Herodes o Grande) ficou de tal modo fascinado por Salomé, a sua enteada, que prometeu dar-lhe tudo o que ela lhe pedisse. Salomé – instigada pela sua mãe, que estava furiosa por S. João Baptista ter repudiado os seus avanços… – pediu-lhe a cabeça do santo. E Herodes Antipas, ainda que relutante, concedeu-lha.

O que tem esta obra de especial? Quanto a mim, tudo. O fundo negro confere-lhe uma atmosfera carregada de sombras e de mistério. Sobre ele, ressalta o manto vermelho de Salomé; a figura espectral de uma criada com a cara coberta de rugas; o torso nu, musculado e luminoso do jovem carrasco; e, claro, a cabeça do santo, servida numa bandeja, como se de uma iguaria se tratasse. Parece dormir.

Existem no mundo apenas cerca de cem pinturas de Caravaggio. Se pensarmos que metade delas estão em Itália, concentradas sobretudo em Roma, e grande parte das restantes foram para museus ou colecções particulares nos Estados Unidos, percebemos que a oportunidade de ver um Caravaggio em Lisboa é daquelas que não se devem desperdiçar (a pintura pode ser vista até 25 de Janeiro).

Outra oportunidade de ouro é a que nos propõe o Museu de Arte Antiga: conhecer a colecção privada do editor Franco Maria Ricci. Ao visitá-la, percebemos que o italiano possui um gosto pronunciado pelo macabro. Além de várias vanitas (pinturas de caveiras que nos recordam a vaidade do mundo), a exposição mostra, por coincidência, três versões da cabeça decapitada de S. João Baptista em cima da bandeja.

Creio que além do prazer de as contemplar, há um ensinamento que se pode retirar destas obras – e da Salomé de Caravaggio, naturalmente. Muitas vezes esquecemos que o Renascimento (entendido no sentido lato, do século XV ao XVII) foi um período de grande violência. Guerras, fomes, cercos, conflitos ideológicos e surtos de peste – houve de tudo um pouco nesses três séculos.

A própria vida de Caravaggio, que se envolvia com frequência em cenas de pancadaria, esteve preso e matou um homem, é um excelente exemplo da violência de que falo. Tem oportunidade de o comprovar com os seus próprios olhos na Gulbenkian, através de uma deslumbrante obra-prima. Por favor, não a desperdice. 

jose.c.saraiva@sol.pt