David Nicholls: ‘Ser fiel a um livro é o pior que se pode fazer’

Depois de Um Dia David Nicholls regressa aos livros com Nós.  Nomeado para o Booker, é um romance sobre o que acontece depois do ‘e foram felizes para sempre’ e de como a felicidade conjugal é abalada pelos filhos.

Acaba de publicar ‘Nós’, cinco anos depois de ter editado o grande sucesso ‘Um Dia’. O que aconteceu durante esta meia década?

Estive a escrever argumentos para cinema e televisão. À medida que Um Dia ia sendo publicado em vários países eu ia em digressão para as sessões de promoção. Era impossível falar sobre Emma e Dexter à noite e escrever sobre alguém novo de manhã. E passei muito tempo à volta de um romance que acabei por deitar fora. Nunca me sentei em frente ao computador a olhar para ontem mas não tinha nenhuma história pela qual me sentisse apaixonado até que surgiu esta. E escrevi-a num ano. Durante os outros quatro, distraí-me.

‘Um Dia’ vendeu milhões de exemplares, o filme esgotou salas. Como mudou a sua vida?

Ainda ando na rua sem ser reconhecido. Sou um escritor, não uma estrela de cinema. Mas comecei a ter muitas cartas a que responder. Recebia cartas amorosas, pessoais e tocantes. Pessoas a contarem-me sobre amores perdidos, a identificarem-se com as personagens, a perguntarem-me coisas sobre o livro. Recebi uma fotografia de um ombro de uma mulher, tatuado com uma frase do romance. Tudo isso me levou muito tempo. Respondia a todos os e-mails. A melhor coisa da internet é que permite às pessoas contactarem connosco. E a pior coisa da internet é que permite às pessoas contactarem connosco. Tive que me afastar. As pessoas ainda me podem contactar, mas por carta.

E a pressão das expectativas?

Não me quis apressar. Não tinha uma ideia. Tenho inveja de escritores que escrevem trilogias ou que têm uma personagem a que podem voltar, como um detective. A cada novo livro tenho que começar do zero, criar um novo mundo, novas personagens. Não queria escrever ‘Um Dia 2’. Mas também não queria chatear ninguém. Além disso, Um Dia parece ter feito sentido internacionalmente. Enquanto o escrevia nem me passou pela cabeça que seria lido por adolescentes no Brasil. Mas ao escrever este livro foi inevitável pensar: fará sentido para adolescentes brasileiros?

Este é um romance sobre a família, as relações entre pai e filho, marido e mulher. Como surgiu?

Percebi que os meus primeiros romances eram comédias românticas. Quando me sentei para escrever Um Dia tinha acabado de ser pai, estava num período dourado da paternidade, cansativo mas simples: tens que tomar conta daquela criança. Ao sentar-me para escrever Nós pareceu-me uma loucura, tendo 46 anos e dois filhos, não escrever sobre a família e a paternidade. Vejo o romance como uma história de amor. Mas uma história de amor que acontece com as dificuldades, as alegrias e os altos e baixos da vida familiar. Estou mais velho e o livro reflecte isso. Comecei por escrever um livro sobre pais e filhos. Ninguém se apaixonava. Mas era frio, zangado, pouco divertido. Foi o livro que deitei fora. E comecei este, um livro de duas metades, a primeira sobre o casamento, a excitação dos primeiros tempos de vida doméstica, e a segunda sobre quando as coisas se tornam complicadas, as dificuldades geradas pelos filhos, quando as diferenças deixam de ser excitantes para serem problemas.

É um livro sobre o medo de perder o amor?

Também. Esse é o grande medo de Douglas. É um tema quase tabu, a ideia de amor não correspondido dentro da família, não só entre marido e mulher como entre pais e filhos. As duas pessoas que Douglas mais ama no mundo parecem não o amar.

‘Nós’ acaba por ser uma sequela?

Todos os romances que escrevi até agora tinham um enredo clássico de comédia romântica, que não mudou desde Shakespeare: rapaz conhece rapariga, gostam um do outro, mas têm que enfrentar obstáculos até que correm para os braços um do outro numa estação de comboios. E é o fim. Mas as nossas vidas não acabam nesse ponto. Quis ver o que acontecia cinco, dez ou quinze anos depois do casamento, quando já se contaram todas as histórias, quando já se sabe tudo um sobre o outro e já se ouviram as piadas todas. Sem ser cínico, mas realista. Muitos livros que li sobre o casamento são negativos, vêem o casamento como um prisão. Eu não queria escrever isso.

Embora ‘Nós’ não seja uma comédia romântica, tem romance e elementos de comédia. E foi nomeado para o Booker. Isso surpreendeu-o?

Muito. Aliás, penso que surpreendeu muita gente. Foi uma confirmação de que temas como o casamento, a família e o amor são importantes. Há a ideia de que não são suficientes para um Booker. Mas era sobre isso que escrevia a Jane Austen, o Henry James, sobre as vidas domésticas de pessoas normais. Tal como Alice Munro, Philip Roth, Updike. Fiquei muito surpreendido quando soube que o livro estava nomeado e nada surpreendido quando soube que não ganhou.

Será ‘Nós’ adaptado ao cinema?

Já tive propostas mas penso que será difícil adaptá-lo, colocar no ecrã a voz de Douglas. Acho que resultaria melhor numa série para TV, com mais espaço, mais tempo.

Quer assinar o argumento?

Não, nunca mais o farei. Já o fiz três vezes e correu sempre mal. A razão para o fazer é porque se quer ter o controlo. Mas nunca se terá o controlo absoluto, fazemos parte de uma equipa de 200 pessoas. Muitas vezes o pior que se pode fazer a um livro é ser-lhe fiel. Às vezes é preciso ser-lhe inteligentemente infiel. E isso é feito melhor por outra pessoa.

rita.s.freire@sol.pt