O pior de todos os infernos é aqui. Não concordam?

Um dia, que aparentemente parecia ser igual à maioria dos outros, encontrei alguém capaz do que eu não conseguia. Não o que me faltava nas contas e descontas da vida – nadar, guiar, cozinhar, cantar, mudar lâmpadas, pregar pregos, montar móveis, ser poliglota – , mas alguém que chega com a palma da mão a…

É a minha mensagem de Novo Ano. Porque muito do que nos está para acontecer será influenciado pelo que sofremos ou conquistámos. Mas outras coisas são meras sombras, um dia atravessarão a nossa vida como se sempre nos tivessem pertencido. Nesse preciso momento, agora mesmo, alguém num lugar que não conhecemos toma o pequeno-almoço e prepara-se para mais um dia. Tem pai e mãe ou a sua memória, filhos ou não, casos amorosos ou ausência deles, uma vida em espera… 

Esse alguém tem nome, cara e um pensamento. Um dia, o que hoje não reconheces, será a pessoa da tua vida. Um homem ou uma mulher que, num lugar obscuro, toma o pequeno-almoço e tem a vida em pausa. 

Quando o(a) encontrares vale a pena tratar essa pessoa como um bonsai. Foi o que as minhas tias, Cristina e Teresa, me ensinaram. Na sua casa viveu uma árvore que me pertencia. Apresentei-me, disse-lhe de mim, quis saber – mas ela, pequeno bonsai, fala demasiado baixo, os meus ouvidos não estão preparados. Pensei que um dia conseguiria estar com elas, ouvi-las como a Teresa as ouvia, escutar o que as angustia, o que me angustia. Tempo e paciência. E a disponibilidade para andar de braço dado com o silêncio e por ele me apaixonar. Voltei a pensar nessa pequena árvore. Um bonsai. Esperança de um mundo novo em que as palavras sejam todas conhecidas antes de ser pronunciadas. 

Uma espécie de silêncio. Por vezes ruidoso, mas sempre silêncio tranquilo, de tolerância. Creio que o amor também é isso. É um dos meus temas preferidos, o do silêncio. Também o dos surdos, que silêncio ouvem, pergunto-me. Não escutam o nosso, é certo. Porque o silêncio, quando o convocamos, tem em si todos os ruídos, sons e palavras que já ouvimos. O deles, não. O deles tem o que nunca foi escutado, um silêncio silencioso feito de páginas em branco, um poço profundo e interdito. À sua porta podemos bater uma vida, esperar pacientemente ou enlouquecer, mas ela ficará fechada porque nunca será escutada. Acontece. Porque há uma surdez que reconhecemos pior. A dos que julgamos poderem ouvir. E por vezes a de nós próprios. 

Depois, a voz de dentro não se dá com o ruído, é um outro ponto importante. Quando existe confusão à volta esconde-se num buraco de que não sabemos a morada. Tem vida e vontade próprias, parece até que não deseja a nossa felicidade – porque quando rimos, quando nos oferecemos aos outros, quando nos apaixonamos ela regressa ao mundo subterrâneo e ficamos amputados. A maioria de nós vive assim. Grávida de mundo e compromissos. Ou dependente da voz de dentro para espantar fantasmas. Talvez o desafio seja unir os dois mundos, as duas vozes. Porque as duas, tantas vezes desavindas, são irmãs ruidosas. E silenciosas. Sem uma ficamos vazios, sem a outra infelizes. 

Há poucas torturas maiores do que a de condenar alguém ao esquecimento de si próprio. Maior do que essa, só mesmo, para alguns, a pena perpétua de viver com a memória do que são. No primeiro caso, é um inferno inumano; no segundo, uma viagem a que ninguém pode fugir – se a memória for boa a jornada não é mais do que um passeio de descapotável por vales e piqueniques, se for má o reconhecimento de que o inferno em vida, o inferno humano, é insuportável. Aí, os caídos na profunda desgraça, tudo fariam para trocar os papéis da sentença. Assinariam de bom grado os papéis que fossem precisos para matar a memória e finalmente esquecer. O pior de todos os infernos é aqui. Aqui dentro. Concordam comigo?

É tudo uma questão de imaginar, na verdade é isso. Poder viajar, sentir os cheiros, a luz e as pessoas não é algo que possa ser reproduzido por muita imaginação que se tenha. Mas as melhores viagens são as que não fizemos, as que estão no papel ou na cabeça, as que desejamos. 

Uma boa metáfora. 

Que nos obriga, mesmo viajando, a continuar a desejar, a sonhar, a ambicionar. Porque sem ir não sentimos metade do que pode ser sentido, mas sem imaginar não conseguiremos navegar no único mar onde tudo é realmente possível, o único lugar onde existe e é possível a perfeição. 
E com tudo isto, esqueci-me do que realmente faz sentido por estes dias. Desejar-lhe um bom ano. Com os votos que nos continuemos a ver nesta forma tão particular de ver.