‘Eles não têm coragem para me prender’

Uma crónica escrita neste espaço sobre José Sócrates – As últimas horas de Sócrates em liberdade – provocou nos leitores reacções desencontradas.  

Houve quem me insultasse, chamando-me «idiota» e até «psicopata», ou dissesse que o texto era um exercício de «imaginação delirante». Houve quem contestasse cordatamente a minha argumentação, defendendo a presunção de inocência de Sócrates e a sua condição de «preso político». E houve quem me elogiasse pela «clareza», «coragem» e «inteligência». Como se vê, opiniões para todos os gostos. 
Que me levam a pensar o seguinte: mesmo que Sócrates venha a ser condenado, muita gente continuará a acreditar na sua inocência. Como, aliás, sucede com Carlos Cruz, em cuja culpabilidade milhares de portugueses – incluindo destacadas figuras de todos os quadrantes – continuam a não acreditar. 
Quando se diz, relativamente a Sócrates, que «há que esperar pela decisão do tribunal», isso é uma pura falácia: qualquer que seja o veredicto dos juízes, ele será objecto de contestação e polémica.

Uma frase proferida por José Sócrates em conversa telefónica com o amigo Carlos Santos Silva, pouco antes de ser detido («Eles não têm coragem para me prender»), é duplamente reveladora.
Em primeiro lugar, parece ser uma admissão de culpa: Sócrates não diz que está inocente, diz é que os juízes não serão suficientemente corajosos para o meter na cadeia. Uma pessoa que se sinta inocente não faz, em princípio, uma afirmação destas. Por outro lado, Sócrates mostra-se possuído por um sentimento de 'impunidade'. Acha-se colocado num tal pedestal, detentor de um tal estatuto, que ninguém ousará detê-lo.
Mas donde virá esta sensação de impunidade? 

Julgo que não apenas Sócrates a interiorizou, mas muitos portugueses. Depois de sucessivos escândalos que terminaram sempre da mesma maneira, com o ex-primeiro-ministro a escapar por entre os pingos da chuva, as pessoas foram-se habituando. «É mais um escândalo de que ele se vai safar» – pensavam. 

Depois das dúvidas, suspeições, trapalhadas e coisas mal explicadas existentes nos casos da Cova da Beira, dos mamarrachos, do diploma, do Freeport, do Face Oculta, do Taguspark, etc. – nos quais o nome de Sócrates aparecia sempre envolvido e que acabavam sempre em águas de bacalhau -, a suspeição relativamente ao ex-primeiro-ministro banalizou-se. 
Perante cada novo caso, os amigos encolhiam os ombros e os inimigos já não acreditavam que Sócrates viesse a ser criminalizado. Era como na fábula de Pedro e o Lobo. E quando a detenção chegou, foi uma surpresa para quase todos.

Escrevi por diversas vezes que Sócrates é «o Vale e Azevedo da política» e sempre admiti que, tal como o ex-presidente do Benfica, havia fortes hipóteses de ele vir a ser detido depois de deixar o cargo. 
Porquê? Porque eu tinha a quase certeza de que a corrupção estava lá – só faltando descobri-la.
Assim, quando José Sócrates saísse de S. Bento e os responsáveis da Justiça, Pinto Monteiro e Noronha do Nascimento, fossem substituídos, era muito provável que a verdade viesse ao de cima. E assim aconteceu.

A parte mais substancial do processo – e que tem sido mais objecto de discussão – prende-se com a prática ou não de corrupção por parte de José Sócrates.
A este respeito, há que dizer o seguinte: por que é que, no caso dos Vistos Gold, os comentadores deram logo a corrupção como adquirida, e em relação a este caso dizem que a corrupção é um crime «muito difícil de provar»? Por que será? 

Mas vejamos sucintamente os factos conhecidos. 

Sócrates confirmou que recebeu elevadas quantias de um amigo, Carlos Santos Silva. Amigo este que, segundo o motorista João Perna, era o «saco azul» do ex-primeiro-ministro. 
Esse amigo de Sócrates estava ligado ao Grupo Lena.
O Grupo Lena foi brindado com várias empreitadas por ajuste directo, no valor de muitas centenas de milhões de euros, quando Sócrates chefiava o Governo.
Ora, que explicação dá Sócrates para isto? Que o dinheiro lhe era passado pelo amigo a título de «empréstimo». Dá vontade de rir! 

A pergunta a fazer é esta: onde está o documento que sustenta essa afirmação? Há alguma letra passada? Alguma declaração de Sócrates a assumir a dívida? Sequer um papel com o registo dos empréstimos? Se nada disso existir, trata-se 'tecnicamente' de uma 'oferta' e não de um 'empréstimo'. E uma 'oferta' supõe qualquer coisa em troca…

Se em casos destes bastasse a palavra das pessoas para sustentar a sua versão, tudo seria possível. A lavagem de dinheiro, a fuga ao fisco, a corrupção, tudo seria simples. Um fulano era apanhado com uma mala de dinheiro, a Polícia questionava a sua origem, e o fulano respondia candidamente: «Foi um amigo que mo emprestou». E tudo ficava por aqui.

Até porque, nesta 'narrativa', há uma segunda pergunta a fazer, porventura fatal: se se tratava de empréstimos, por que não foram feitos normalmente, às claras, através de transferências bancárias? Se tudo era legal e normal, como se explicam esquemas tão complicados de circulação do dinheiro, como envios de notas em envelopes fechados? Para já não falar dos negócios de casas entre o amigo Carlos Santos Silva, a mãe de Sócrates e o próprio Sócrates, ou a insólita aquisição, por parte de Santos Silva, do monte alentejano onde hoje vive a ex-mulher de Sócrates com o companheiro…

Estes bizarros expedientes mostram sem margem para dúvidas que havia qualquer coisa a esconder.
Recordo que Duarte Lima foi recentemente condenado a 10 anos de prisão por ter burlado o BPN. 
Estavam em causa uns terrenos que valeriam determinada quantia e que Lima vendeu ao banco por uma quantia muitíssimo superior, beneficiando da sua 'influência'. 

Duarte Lima arranjou naturalmente uma explicação para o caso – mas o juiz considerou essa explicação «inverosímil» e até o censurou por pretender enganar o tribunal e não assumir a culpa.
Ora, aqui estamos perante um caso mais grave. 

A explicação avançada por Sócrates para as entregas continuadas de dinheiro por parte do amigo é também manifestamente inverosímil. 

Mas há uma agravante relativamente a Duarte Lima: Sócrates era primeiro-ministro, estando numa posição de muito maior responsabilidade. E a burla de que se suspeita não foi a privados mas ao próprio Estado. Porque algumas das obras adjudicadas directamente podem ter custado ao Estado mais uns largos milhões do que o seu real valor. 

jas@sol.pt