Entregar-nos a alguém não pode ser coisa de meio-termo

Amei pessoas e não enlouqueci quando as perdi. Podia ter acontecido. Mas no pico do sofrimento tive saudades de quem não conheci, de quem não amei, de quem perderia se tivesse abdicado da razão. O que me liga à vida é o vício do jogo, a ansiedade de baralhar de novo, a esperança de que…

Julgo que é a nossa ambição. A sua também, aposto. Pelo menos a ambição num mundo menos perfeito do que este. Mas talvez possamos concordar noutra coisa: entregar-nos a alguém não pode ser uma coisa de meio-termo. Não é um filme de cinemascope numa televisão de cozinha, meia-dose de pescada em dia de muita fome ou um circo sem trapezistas. Podemos dizer que amamos, jurar novas galáxias e atingir picos de satisfação, mas rendermo-nos a alguém é oferecer-lhe o que temos de melhor, a começar pelo coração.

Não pode correr mal porque se correr, a palavra 'mal' será demasiadamente pequena para ser usada. A tragédia de nos tornarmos órfãos afectivos é a constatação de não nos poderem devolver aquilo que demos. Ficamos sem uma parte do que nos fez ser especiais, porventura a melhor. Ficamos ocos.

É o mesmo que viver numa casa sem referências, sem nada que reconheçamos como nosso. Sem fotografias, provas do que fomos, do que somos. Não há estabilidade possível sem um lugar onde as fotografias se sintam bem. Tê-las escondidas, no sepulcro das caixas ou álbuns, obriga-nos a viver em falta, sem referências e um tempo interior. É o mal de mudar de sítio, de mudar de vida – precisamos de nos voltar a afeiçoar, de construir novas rotinas, de ganhar a confiança da casa e o seu coração. Só aí valerá a pena tirá-las do álbum, só ai elas se sentirão confiantes para viver aos nossos olhos. Se o fizermos antes do tempo, elas serão apenas fotografias e nós passageiros sem bilhete válido.

E de uma coisa tenho a certeza. Quanto mais sozinhos estivermos, mais habitada a casa parecerá. Não de fantasmas, não de outras pessoas por quem, nos dias de solidão tanto gritamos, mas de livros, imagens, quadros, jogos de crianças, cadeiras, candeeiros e o resto. À medida que me fui afeiçoando a viver assim comecei a ter cuidado antes de fechar as luzes. Cuidado em deixá-los no mesmo lugar, nas mesmas posições para que possam, como eu, descansar sem a meio da noite acordarem sem norte.

É tudo uma questão de liberdade. Dos objectos e de mim próprio. A liberdade individual, a nossa, define-se por poucas coisas. E nesses detalhes existem contradições e paradoxos, o costume. Em criança lembro-me que me ardia o desejo de decidir por mim, sonhava com outros dias, dias em que pudesse comer o que me apetecesse em restaurantes onde carnes e peixes estariam à minha escolha. Hoje (que o faço) adoraria regressar à velha casa onde me sentava e comia o que me punham no prato. A liberdade em mim, cada vez mais, é uma via rápida de pensamento, não uma acção concreta.

E nos tempos que correm, a liberdade de sonhar. A liberdade de ter os nossos próprios pesadelos; de os gerir como melhor os entendermos. Tenho dois recorrentes. No Inverno oiço fora de casa um barulho pouco definível, qualquer coisa que não parece ser humana. Quando cai a noite a impressão torna-se uma espera – o som dos ventos, da chuva, um cheiro húmido que não é humidade, uma presença ausente. Sim, lá fora, nestes dias nocturnos, frios e implacáveis, espero sem esperar por alguém que me bata à porta. Alguém que, em troca de pão e água, me ofereça um pouco de vento e chuva. No sonho abro sempre a porta. E deixa imediatamente de ser noite. 

Tenho um segundo sonho. Entro por uma porta que dá para outra. Dentro da segunda está um homem sentado, a ler ou a esperar. Não entro. Volto para trás. Abandono a primeira das portas, regresso a um campo onde estão pessoas que me parecem familiares embora nunca as tenha visto. Abraços. Sorrisos. Dizemos coisas, mas ninguém abriu a boca para as dizer. Costumo acordar nessa imagem. Numa partícula de instante fico com dúvidas se o despertador me devolveu à realidade ou ao sonho. Entre mundos, confuso, uma pequena dúvida: para onde vamos quando nos esquecemos?

Uma pequena grande dúvida, não é? Os sonhos talvez sejam como as pessoas que encontramos por aí. Há aquelas que não nos entram na imaginação. Vemo-las, falamos com elas, trocamos informações, mas depois quando nos queremos voltar a lembrar é como se não existissem. Ao princípio concluía: fugiu-me da memória. Agora já sei que o que nunca entra não pode fugir. Por isso lhe digo… há quem tenha o talento de passar pelos pingos da chuva, gente que não reconhecemos quando a deixamos de ver, que passam incógnitos como se não tivessem um código de barras. Seres especiais, pelo menos tão especiais como os que, de tão grandes, não cabem nas imaginações mais pequenas.