Muçulmanos na Europa – uma maioria traída por radicais

Fazem parte da comunidade religiosa que mais cresceu na Europa nas últimas décadas. Muitos foram descriminados desde o primeiro dia de vida, a maior parte continua a viver em condições sociais difíceis, tornando-se alvos fáceis para os profetas da radicalização. Em 50 milhões de muçulmanos na Europa, são muito mais os casos de sucesso do…

"Não sou Charlie, sou Ahmed, o polícia morto. O Charlie ridicularizava a minha fé e cultura e eu morri a defender o seu direito a fazê-lo". A frase, que levou a que a expressão #JeSuisAhmed rivalizasse no Twitter com o 'grito' solidário global #JeSuisCharlie, é da autoria de um libanês que em 2000 fundou na Bélgica a Liga Árabe Europeia.

Como mostram as mais de 39 mil repetições do tweet, Dyab Abou Jahjah descreveu o sentimento de uma grande maioria dos quase 50 milhões de muçulmanos que vivem no Velho Continente, dando-lhe o rosto de um caso de sucesso de integração – aos 42 anos, Ahmed Merabet estava prestes a deixar a patrulha das ruas de Paris por um cargo de detective, garante o Figaro.

"O meu irmão era um muçulmano que foi morto por dois terroristas, dois falsos muçulmanos", disse Malek Marabet na homenagem a Ahmed, alguém que descreveu como «orgulhoso do seu nome, orgulhoso por representar a polícia e defender os valores da República – liberdade, igualdade, fraternidade".

Tal como os irmãos Kouachi – responsáveis pela matança no Charlie Hebdo -, os Merabet chegaram a França vindos da Argélia, origem estimada de pelo menos três quartos dos quase cinco milhões de muçulmanos que residem no país.  

Um êxodo que se massificou após a guerra de 1954-62, conflito que roubou a vida a várias centenas de milhares de franceses e argelinos, antes de terminar com os 132 anos de ocupação gaulesa no país magrebino.

Em França, a maior parte desses argelinos passou a viver nas infra-estruturas de habitação social erguidas nas décadas de 60 e 70 nos arredores dos grandes centros urbanos. Um estudo de 2007 da Brookings Institution, 'Ser Muçulmano em França', revelava que seis milhões de pessoas viviam nesses banlieues e que uma em cada duas famílias magrebinas recorria à habitação subsidiada.

Juntos em mundos diferentes 
Ressalvando não ser "tecnicamente correcto" chamar guetos a esses bairros, o estudo reconhece que "a população não-imigrante e os imigrantes bem-sucedidos tendem a abandonar estes locais assim que os seus rendimentos o permitam". Existe, pois, um "fenómeno de 'guetização'" em zonas marcadas pela "pobreza, dependência social, mercados negros, famílias destroçadas e mães solteiras".

É nesse ambiente que pelo menos duas gerações de argelinos chegaram à idade adulta nas grandes cidades francesas, com várias razões para se sentirem cidadãos de segunda naquele que em muitos casos é o único país que conheceram na vida: em 1999, os imigrantes constituíam 8,6% da força laboral do país mas já representavam 15% dos desempregados. No mesmo ano, o desemprego afectava 13% dos cidadãos de origem francesa e mais de um quinto dos estrangeiros (22%); e nem o empenho escolar melhorava a expectativas, pois em 2002 a falta de trabalho atingia 32% dos jovens argelinos que tinham terminado o ensino secundário – problema partilhado por apenas 8% dos colegas gauleses.

Ao mesmo tempo, outro dado contribui para as dificuldades de integração –  a discrepância entre a taxa de natalidade entre a comunidade muçulmana e as famílias francesas. O estudo da Brookings concluiu que, na década de 90, as famílias argelinas tiveram em média mais de três filhos, enquanto entre os franceses a média não ultrapassou os 1,5. Fenómeno que tanto aumenta a dificuldade de quem tem pouco para dividir pelos seus como intensifica a desconfiança dos locais, dando até origem a obras que especulam sobre uma França subjugada à lei islâmica. 

Extremismos à parte, a história da integração também tem casos de sucesso. Na última legislatura, cinco dos 11 eurodeputados muçulmanos eram franceses. Todos de origem argelina, num dos casos partilhada com ascendência marroquina. O de Rachida Dati, a primeira mulher muçulmana que assumiu um cargo ministerial no país, com a pasta da Justiça no Governo de Nicolas Sarkozy.
  
Londonistão

E se é em França que vivem em maior número, os muçulmanos não deixam de enfrentar desafios e oportunidades semelhantes quando escolhem outro país europeu para emigrar, sejam turcos na Alemanha, paquistaneses no Reino Unido, marroquinos na Bélgica ou bósnios na Dinamarca.

A jornalista Melanie Phillips abordou o que considera ser uma invasão muçulmana no Reino Unido num livro que sugestivamente titulou de Londonistão, publicado menos de dois anos depois dos atentados bombistas de 7 Julho de 2005 na capital britânica. O termo, que a BBC diz ter origem na forma como os serviços secretos franceses comentavam o refúgio londrino dos principais rostos da oposição aos regimes ditatoriais e laicos do Médo Oriente, era acompanhado na capa com a frase: "Como o Reino Unido está a criar um Estado Terrorista no seu interior".

Colunista no Daily Mail, Phillips voltou à carga em 2011: ilustrado com fotos de panfletos e cartazes que indicavam a "entrada em zona controlada pela sharia», em Tower Hamlets, o artigo de Phillips concluía que as "implicações assustadoras das autoproclamadas zonas islâmicas estão a espalhar-se no coração da democracia".

Apesar da insólita propaganda – que a própria autora reconhece ter sido desde logo travada pelas autoridades, com a retirada de cartazes e panfletos -, o alarmismo do artigo não pode ser dissociado da eleição, meses antes, de Luftur Rahman como autarca daquele concelho dos arredores de Londres. 

Nascido numa região paquistanesa que hoje faz parte do Bangladesh, Luftur Rahmam foi o quarto muçulmano a ser eleito edil na periferia de Londres desde 1981. E embora possa ser apresentado como um caso de sucesso de integração, a sua carreira política não deixa de ser afectada pelas crenças religiosas. A polémica em torno da sua alegada proximidade ao radical Fórum Islâmico Europeu levou o Partido Trabalhista a retirar-lhe o apoio político e ainda hoje é arma de arremesso dos seus críticos. Seja pelo trabalho realizado ou pela demografia do concelho, certo é que Rahman foi reeleito em 2014 pelo partido que fundou, o Tower Hamlets First.

Imã como arcebispo de Roterdão

Mas se uns acabam por tirar proveito político das raízes muçulmanas, há outros que fazem carreira sem votos de imigrantes ou descendentes. É o caso do também trabalhista Ahmed Aboutaleb, nomeado para presidente da Câmara de Roterdão em 2008. Antes disso, o marroquino de nascença já fora secretário de Estado para os Assuntos Sociais e Emprego no país onde só chegou aos 15 anos. Mas o currículo não impediu o porta-voz da islamofobia holandesa de proclamar a sua insatisfação: "Escolher um muçulmano para liderar a segunda maior cidade da Holanda é tão ridículo como escolher um holandês para gerir Meca. Com ele, Roterdão será Rabat nas margens do Mosa. Brevemente teremos um imã como arcebispo", acusou Geert Wilders, o líder do partido nacionalista que conta com 16 senadores, 41 deputados e 3 eurodeputados nas suas fileiras. 

Talvez por estar habituado a radicais como Wilders, Aboutaleb é também um dos principais críticos do fundamentalismo islâmico na Holanda. "Não se percebe como se ataca a liberdade, mas se não gostam da liberdade façam as malas e vão-se embora", reagiu Aboutaleb na semana passada, após os ataques de Paris. "Se não gostam de estar aqui porque há humoristas de quem vocês não gostam que fazem um jornal, então eu posso dizer-vos para se irem lixar", afirmou o autarca muçulmano num directo televisivo.

Por cada par de Kouachis que aparece com a sua barbaridade, há milhões de Aboutalebs que ficam chocados com o terror. Nem todos com a visibilidade de políticos, futebolistas ou artistas mas a grande maioria goza pacificamente a vida em liberdade: a acreditar na análise do Figaro, 93% dos eleitores muçulmanos de França escolheram François Hollande na segunda volta das presidenciais de 2012, contra 7% de Nicolas Sarkozy. Como a vitória do socialista se deu por pouco mais de um milhão de votos, não será difícil de perceber a importância que tiveram os quase dois milhões de seguidores de Maomé que foram às urnas.

nuno.e.lima@sol.pt