Esmagar os cornos contra as portas erradas

O poder ter hoje um segredo, guardá-lo, é quase uma impossibilidade. Não penso nos casos amorosos às escondidas de casamentos mais ou menos felizes; não passam de manobras de diversão para manter o fogo vivo, fugir de uma vida que não suportam ou por pura animalidade dos sentidos. Saber guardar um segredo é outra coisa.…

Nas conversas infantis com Deus, rezava para que não fosse possível ir a uma guerra. Um tio guardara uma granada de Angola, outro oferecera-me a Oeste Nada de Novo, vi às escondidas O Caçador. Com o tempo conheci gente de carne e osso, estropiados, exilados, órfãos. A guerra, pois. De que falava e deixei de falar, anestesiado por uma paz que parecia para sempre. Nunca nada é para sempre. Os bombardeamentos, a morte e o que verdadeiramente assusta para lá do susto: o horror fechado em cada uma das casas, calado em cada um dos corações, vivido em cada uma das famílias. O horror é o que fica quando tudo parece ter passado. É a guerra que se mantém viva quando a paz já foi festejada.

Muitos amigos falam-me do destino. Que as coisas acontecem com um sentido, mesmo que seja um sentido que não nos seja imediatamente óbvio. Não sei, talvez. Mas sei que aceitar a vida obedientemente, como se esta já estivesse determinada e fôssemos apenas um touro com um número e uma ganadaria, é o mesmo que uma condenação de morte por antecipação – deixar à bondade do destino a nossa sorte é brincar com o fogo, o destino (a existir) não será bondoso ou clemente. Mas encarar a vida com revolta nos braços e sangue nas veias, como se esta pudesse ser alterada pela raiva, é oferecermo-nos à morte, ao erro e à injustiça, é esmagarmos os cornos contra as portas erradas. Talvez nestas coisas, falhas de coragem ou com excesso dela, o melhor seja simplesmente fazer o que nos seja possível para que o destino se sente connosco e nos respeite. A espumar de raiva ou em estado de miserável aceitação, tal nunca será possível. Será sempre como ele quer, a bem ou a mal, mas como ele quer.

Tenho os meus truques, um deles é fácil e tem a vantagem de ser de uso universal. Das ambições concretizadas, dos projectos saídos do papel, das utopias tornadas possíveis, das paixões e viagens percorridas, faço sempre por ter saudades do que não tive, do futuro que não ousei, das pessoas que não frequentei. Saudades do que podia ter sido e dos desejos que desejei. Assim, foco-me mais no que tenho para fazer no que naquilo que fiz, comigo tem resultado, pelo menos até agora.

Ah, e pormenor de que não prescindo, deixei de ter tempo para leituras que não me provoquem. Que não me façam mal e bem, que não me afectem, questionem, matem o que dou como adquirido, me roubem o ar e ofereçam o que não tenho. Quero livros para amar e odiar. Não quero os outros. A maioria dos outros. Não tenho tempo. Quero viver o que me resta, aproveitar e limpar a casa do que me fez gastar o que não percebia ser um bem tão escasso.

Porque isto passa depressa e este país, este mundo, não está construído para que os mais velhos possam ter um sopro de vida. Nas empresas ou nas famílias a experiência é esquecida ou chutada para onde o diabo perdeu as botas. Não há paciência, não há tempo, não há energia para o que foge da agenda do que tem de ser feito. Encontremos um truque que inverta a lógica, um estratagema que vá ao encontro da fruta da época… que tal os políticos, empresários, filhos e netos perceberem que têm de se rodear de gente mais velha? Porquê? Elementar. Se o fizerem continuarão a cruzar-se com gente que os tratará como se fossem novos… De outra maneira serão os próximos na lista de excedentes.

Falo muito do tal óbvio. Tantas vezes dele nos esquecemos, de um lugar-comum que deveria ser o sítio onde a maioria cabe sem constrangimentos; só que nos levamos demasiado a sério, queremos ser mais, escrever o que mais ninguém escreveu, é legítimo. Esquecemo-nos do que é simples à custa de tanto procurarmos o que não está à vista. Conheço bem as teorias da reencarnação, fazem sentido aos meus olhos, mas delas guardo breves reticências. Chego então ao que quero dizer: reencarnamos várias vezes em vida. Morremos tanto antes da morte que, quando a morte verdadeira nos bater à porta, se estivermos bem resolvidos, é uma questão de nos deixarmos ir. Na vida nunca mais serei um atleta, nunca mais beijarei os meus pais, nunca mais correrei com os amigos entre as portas da infância, nunca mais verei o Natal com os olhos que via. Morri um pouco com o fim de todos esses momentos, não tem mal. Morro e renasço, como todos, como acontece consigo. Até ao fim. Espero. Esperamos.