Amélia Muge fala sempre de Amália Rodrigues no presente. É tão natural referir-se à fadista como se ela ainda estivesse entre nós, que a cantora até estranha a observação. “Os versos dela estão vivos. A Amália está viva nas palavras. Não consigo imaginar um poema como uma coisa morta, só com palavras ali depositadas”, comenta a autora de Amélia com versos de Amália, disco onde se dedicou a criar canções para a poesia que a diva do fado escreveu e que estão compilados no livro 'Versos', de 1999.

É esse trabalho que vai estar em destaque no concerto que Amélia Muge apresenta, na próxima sexta, dia 23, no Grande Auditório da Culturgest, com os temas do álbum a serem tocados com novos arranjos e uma projecção a servir de pano de fundo. Uma forma directa de colocar as palavras de Amália em destaque e lhes dar o merecido destaque. “Não me sentia bem se o protagonismo fosse meu”, diz Muge, devota da escrita da fadista.

A cantora e compositora nunca conheceu pessoalmente Amália, mas a relação que mantém com a sua obra é de longa data. “A Amália é uma voz ancestral. Não sou capaz de dizer qual foi a primeira coisa que ouvi dela. Sei que está na minha memória desde criança. Ela entra em nós assim, tem essa força”. Mesmo assim, só quando Manuela de Freitas lhe lançou o desafio de musicar os versos de Amália é que Amélia se sentiu capaz de o fazer.

Sem o aval da amiga também letrista – e, mais tarde, da família da própria fadista – nunca lhe teria ocorrido tal “ousadia”. “Não sendo fadista, sempre me foi muito difícil perceber como podia homenagear o fado. A sugestão da Manuela abriu-me essa porta e fico muito feliz por estar agora no grupo de pessoas que tentam divulgar a importância do trabalho da Amália como versejadora”.

Por isso mesmo, a escolha das letras foi específica: cantar as palavras que Amália nunca cantou (só há uma excepção, 'Sou Filha das Ervas'). Esta decisão prende-se com o facto de Amélia não querer ser só uma intérprete, porque na realidade é uma compositora e cantora muito particular. “O meu mundo é feito das coisas que componho”, diz. Coisas essas contaminadas por influências tão diferentes como a música de raiz tradicional, sonoridades de base coral e da world music. Nunca houve, portanto, a tentação de afadistar a voz com estes versos? “Ou sabemos que pertencemos a esse mundo e aí faz sentido, ou não pertencemos e se forçarmos fica artificial”, comenta. A par disso, acrescenta, “muitos destes versos não pertenciam de maneira directa ao fado. Havia aqui um espaço onde podia ser útil”.

Mas mais do que ser útil, Amélia com versos de Amália é uma forma de Amélia Muge homenagear Amália Rodrigues. Uma demonstração do seu obrigado à fadista, mas também a todos dentro do universo do fado – como Mísia, Mafalda Arnauth, Ana Moura, Cristina Branco e Pedro Moutinho – para quem já escreveu e que a ajudaram “a crescer enquanto compositora e ser humano”.

alexandra.ho@sol.pt