66 cadáveres por reclamar em 2014

José morreu no ano passado, aos 50 anos, no Hospital de São João, no Porto. Durante o internamento, os médicos perceberam que não tinha família e, por isso, foi sem surpresa que na hora da morte constataram que ninguém apareceu para reclamar o corpo. O cadáver acabou por ser enviado para o Instituto Nacional de…

O caso foi relatado ao SOL por Pedro Brito, do Serviço de Humanização do Hospital de São João. E não foi único. No ano passado, houve mais dois: um idoso e um estrangeiro. «Foi um ano atípico», reconheceu, acrescentando que em anos anteriores os funerais resolveram-se sempre com recurso a amigos ou familiares. Pedro Brito recorda outro caso, já antigo: o do bebé que nasceu morto e que a mãe não quis levar para fazer o funeral quando teve alta.

Hospitais procuram famílias 

O ano, atípico, levou o Serviço de Humanização do hospital a contactar a Santa Casa da Misericórdia do Porto, que em tempos realizou os funerais dos indigentes. O capelão da instituição, cónego Américo Aguiar, confirmou ao SOL a disponibilidade para retomar este serviço, semelhante ao que existe em Lisboa a cargo da Irmandade de São Roque (ver texto ao lado). «Quando surgiu o subsídio de funeral deixámos de ser solicitados», disse, pois famílias passaram a conseguir pagar os enterros. «Mas a qualquer momento podemos accionar de novo este serviço».

Em todo o país, os hospitais confrontam-se com corpos não reclamados, o que dificulta a gestão das casas mortuárias. Muitos vão parar ao Instituto de Medicina Legal que tem maior capacidade de armazenamento e por mais tempo. Mas em Lisboa, como a Irmandade de São Roque realiza este serviço, muitos saem directamente dos hospitais e não passam pela Medicina Legal. Isso explica que em 2014, os números de funerais acompanhados pela irmandade (108) sejam superiores aos totais dos cadáveres não reclamados que chegaram ao instituto (66).

No Centro Hospitalar de Lisboa Central (CHLC) é assim: «a equipa que acompanha clinicamente o doente até ao falecimento estabelece contactos com o objectivo de comunicar o óbito, recorrendo a documentos de identificação do falecido ou a informação que este possa ter dado em vida». Se isso não é possível ao fim de um mês, o CHLC recorre à Misericórdia de Lisboa.

A prática do Centro Hospitalar da Universidade de Coimbra é outra. Os casos são raros mas quando ocorrem e, na impossibilidade de chegar à família, o hospital assume o funeral: em 2014, foram três. Em Loures, o hospital, a autarquia e a misericórdia articularam-se para dar resposta a este problema e realizaram dois funerais no ano passado.

No Algarve, a situação é mais complexa pois aqui vivem muitos estrangeiros e, quando são vítimas de acidente ou crime, é difícil chegar às famílias. O Centro Hospitalar do Algarve explicou ao SOL que «os serviços entram em contacto com as autoridades policiais da área da última morada da pessoa e, no caso de ser estrangeiro, contactam igualmente a embaixada». Em 2014, houve 16 corpos não reclamados: em sete foi possível localizar a família, nos outros nove a autarquia procedeu à inumação.

Acidentes, crimes e suicídios

É às câmaras que compete sepultar os indigentes, explica João Pinheiro, vice-presidente da Medicina Legal. «Umas cumprem, outras não. Vamos adiando o problema, que se arrasta em ofícios para o Ministério Público. Mas não podemos ter as arcas entupidas», diz, lembrando que em 2014 houve 16 cadáveres que nem foi possível identificar.

Acidentes, crimes e suicídios são as principais causas de morte nos adultos, a maioria homens e com mais de 60 anos. Mas também houve 13 cadáveres de fetos ou nados mortos que, por terem mais de 22 semanas de gestação, têm de ser obrigatoriamente inumados. Os cadáveres identificados ficaram em média 11 meses a aguardar inumação, mas em 2014 um deles esperou 41 meses.

Os agentes funerários também ajudam a resolver estes casos, explicou ao SOL Paulo Carreira, da Servilusa, afirmando que, nalguns casos, a empresa nem cobra aos hospitais pelo enterro dos indigentes. O director-geral de negócio da empresa lembra ainda que o funeral social é um serviço obrigatório que tem de ser disponibilizado. Em 2014, a Servilusa fez cerca de 500 funerais sociais, a um preço de 323 euros, que inclui acompanhamento religioso. Por vezes, como a família não tem possibilidade de avançar com o dinheiro, a agência disponibiliza o serviço e depois, quando a Segurança Social atribui o subsídio, a família paga.

rita.carvalho@sol.pt