Contos infantis

‘Bom aluno’ mas mau perdedor, Passos Coelho chamou ao programa do Syriza “um conto de crianças”, reagindo assim ao grande abanão provocado na Europa pela expressiva vitória do partido da esquerda radical grega nas eleições de domingo, dia 22. Entre os chefes de governo europeus, apenas o primeiro-ministro do Reino Unido rivalizou com Passos Coelho…

Mas Cameron tem, pelo menos, a desculpa de estar acossado pela concorrência dos eurocépticos britânicos. A própria Angela Merkel, o alvo mais ostensivo do levantamento eleitoral contra a austeridade, preferiu uma fórmula consentânea com o respeito pela soberania do povo grego e desejou “muita força e sucesso” a Alexis Tsipras, seu novo interlocutor no Governo de Atenas. Hipocrisia para salvar as aparências, sem dúvida, mas uma norma recomendada nos manuais de boas maneiras dos governantes civilizados.

Ignoro se o arrogante paternalismo de Passos Coelho terá sido uma resposta ao novo ministro das Finanças grego, Yanis Varoufakis, que, na passada segunda-feira, declarou à BBC: “Uma criança de oito ou nove anos compreenderia os constrangimentos da Grécia”.

Mas a coincidência não parece ser fortuita, já que Varoufakis sublinhou, evocando o colapso grego de 2010: “Na sua infinita sabedoria, a Europa decidiu lidar com esta falência pondo o maior empréstimo da história da humanidade sobre os ombros mais fracos, os dos contribuintes gregos. E o que tivemos desde então foi um waterboarding que tornou esta nação uma colónia de dívida”.

Bem vistas as coisas, “conto de crianças” – ou da Carochinha – foi o que Passos Coelho andou a tentar vender aos portugueses, depois de ter rasgado as suas promessas eleitorais em nome do realismo político, de uma cegueira ideológica ultraliberal e da submissão rastejante aos pés dos credores internacionais. Mas não é de excluir que tudo isso seja encarado pelo primeiro-ministro como um verdadeiro 'conto para adultos', incluindo cenas 'eventualmente chocantes'…

O mais impressionante não foi só o autismo da Alemanha e das instituições europeias perante os múltiplos sinais de ruptura do sistema político grego e a anunciada vitória do Syriza. Foi também a recusa obstinada em enfrentar as evidências, ao alcance de um cândido olhar infantil: a austeridade conduziu a Grécia a uma terrível catástrofe económica e social que a impediria de honrar compromissos insolúveis, com a espiral da dívida atingindo níveis estratosféricos, e de acudir aos dramas humanitários da pobreza e do desemprego em massa que se foram agravando ao longo dos anos de assistência internacional.

Entretanto, a Europa foi-se fechando na sua quadratura do círculo, embalada pelo mantra das 'reformas estruturais' que, trocadas em miúdos, se traduziram essencialmente no sacrifício de direitos sociais básicos e no aprofundamento das desigualdades nos países intervencionados e à escala europeia.

Não é por acaso que as reformas na estrutura do Estado, contra as redes clientelares e corporativas ou os regimes de privilégio, têm sido consideradas 'irrealizáveis' – ou se limitaram a uma retórica esdrúxula, como aconteceu até agora na Grécia.

Ora, para concretizar um programa de transformação do país e levar a bom porto as negociações com a Europa, o Syriza terá de empreender com sucesso o combate às oligarquias, à paralisia do sistema fiscal e ao desperdício dos recursos, capturados por uma casta de intocáveis que prosperaram em promiscuidade com a partidocracia helénica.

Dito isto, a tribo dos profetas da desgraça grega são cessa de aumentar, nomeadamente em Portugal. Não só apostam em que o Syriza falhe em toda a linha, mas que funcione também como vacina contra as veleidades intoleráveis de uma alternativa à austeridade.

Pouco lhes importa que a austeridade tenha servido para punir e humilhar mas não para resgatar, poupando apenas aqueles cujo estatuto social ou profissional se encontra confortavelmente protegido. É o caso dos nossos opinion makers mais afoitos em ver os gregos – e, já agora, os portugueses – expiarem as suas culpas até ao fim dos tempos.

Como sempre, a sobranceria e o cinismo têm costas largas: desde a escassa probabilidade de Berlim, Bruxelas e os mercados contemporizarem com as propostas gregas, até às contradições e alianças suspeitas do próprio Governo de Atenas (integrando um partido da direita nacionalista eurocéptica ou condescendendo com Putin). Seja como for, o salutar abanão das eleições de domingo despertou a Europa da letargia e libertou-a, para já, dos interditos. É um conto edificante – para crianças e adultos.