Mas Cameron tem, pelo menos, a desculpa de estar acossado pela concorrência dos eurocépticos britânicos. A própria Angela Merkel, o alvo mais ostensivo do levantamento eleitoral contra a austeridade, preferiu uma fórmula consentânea com o respeito pela soberania do povo grego e desejou “muita força e sucesso” a Alexis Tsipras, seu novo interlocutor no Governo de Atenas. Hipocrisia para salvar as aparências, sem dúvida, mas uma norma recomendada nos manuais de boas maneiras dos governantes civilizados.
Ignoro se o arrogante paternalismo de Passos Coelho terá sido uma resposta ao novo ministro das Finanças grego, Yanis Varoufakis, que, na passada segunda-feira, declarou à BBC: “Uma criança de oito ou nove anos compreenderia os constrangimentos da Grécia”.
Mas a coincidência não parece ser fortuita, já que Varoufakis sublinhou, evocando o colapso grego de 2010: “Na sua infinita sabedoria, a Europa decidiu lidar com esta falência pondo o maior empréstimo da história da humanidade sobre os ombros mais fracos, os dos contribuintes gregos. E o que tivemos desde então foi um waterboarding que tornou esta nação uma colónia de dívida”.
Bem vistas as coisas, “conto de crianças” – ou da Carochinha – foi o que Passos Coelho andou a tentar vender aos portugueses, depois de ter rasgado as suas promessas eleitorais em nome do realismo político, de uma cegueira ideológica ultraliberal e da submissão rastejante aos pés dos credores internacionais. Mas não é de excluir que tudo isso seja encarado pelo primeiro-ministro como um verdadeiro 'conto para adultos', incluindo cenas 'eventualmente chocantes'…
O mais impressionante não foi só o autismo da Alemanha e das instituições europeias perante os múltiplos sinais de ruptura do sistema político grego e a anunciada vitória do Syriza. Foi também a recusa obstinada em enfrentar as evidências, ao alcance de um cândido olhar infantil: a austeridade conduziu a Grécia a uma terrível catástrofe económica e social que a impediria de honrar compromissos insolúveis, com a espiral da dívida atingindo níveis estratosféricos, e de acudir aos dramas humanitários da pobreza e do desemprego em massa que se foram agravando ao longo dos anos de assistência internacional.
Entretanto, a Europa foi-se fechando na sua quadratura do círculo, embalada pelo mantra das 'reformas estruturais' que, trocadas em miúdos, se traduziram essencialmente no sacrifício de direitos sociais básicos e no aprofundamento das desigualdades nos países intervencionados e à escala europeia.
Não é por acaso que as reformas na estrutura do Estado, contra as redes clientelares e corporativas ou os regimes de privilégio, têm sido consideradas 'irrealizáveis' – ou se limitaram a uma retórica esdrúxula, como aconteceu até agora na Grécia.
Ora, para concretizar um programa de transformação do país e levar a bom porto as negociações com a Europa, o Syriza terá de empreender com sucesso o combate às oligarquias, à paralisia do sistema fiscal e ao desperdício dos recursos, capturados por uma casta de intocáveis que prosperaram em promiscuidade com a partidocracia helénica.
Dito isto, a tribo dos profetas da desgraça grega são cessa de aumentar, nomeadamente em Portugal. Não só apostam em que o Syriza falhe em toda a linha, mas que funcione também como vacina contra as veleidades intoleráveis de uma alternativa à austeridade.
Pouco lhes importa que a austeridade tenha servido para punir e humilhar mas não para resgatar, poupando apenas aqueles cujo estatuto social ou profissional se encontra confortavelmente protegido. É o caso dos nossos opinion makers mais afoitos em ver os gregos – e, já agora, os portugueses – expiarem as suas culpas até ao fim dos tempos.
Como sempre, a sobranceria e o cinismo têm costas largas: desde a escassa probabilidade de Berlim, Bruxelas e os mercados contemporizarem com as propostas gregas, até às contradições e alianças suspeitas do próprio Governo de Atenas (integrando um partido da direita nacionalista eurocéptica ou condescendendo com Putin). Seja como for, o salutar abanão das eleições de domingo despertou a Europa da letargia e libertou-a, para já, dos interditos. É um conto edificante – para crianças e adultos.