Serão os alemães carniceiros em potência?

Ler o que escrevo depois de o escrever é um exercício de humildade. Não apenas pelo reconhecimento de palavras mais rugosas, mas também pela constatação de que existe uma intromissão do que em mim pertence a um outro mundo.

Não reconheço muito do que escrevo, sei apenas que o pensei, como sei que, tantas vezes, as palavras me saem da boca para fora, incontinentes, deslizantes, provocadoras. O que estou a dizer? Que alguém escreve por mim? Não é bem isso. Que dentro de nós existem interferências, como os aparelhos de rádio que saltam de estação. Somos mais do que aquilo que o espelho reflecte. Somos também o que temos escondido; em nós a inconsciência é um canto de sereia ou uma tragédia.

Somos também o passado que carregamos, claro que sim. O tal inconsciente, um rumor que nunca chega a tornar-se claro na nossa cabeça. E matar o passado é (como todos sabemos) uma impossibilidade. Podemos até criar a ilusão de que lhe torcemos a garganta e o espezinhamos para longe da memória, mas ele volta sempre e muito mais forte do que nos minutos em que o desejámos matar. Isto da vida é uma grande invenção, diz-me uma velha senhora da pastelaria de todas as manhãs. Uma invenção em que não somos donos de algumas teclas do destino. A tecla que apaga, por exemplo. Podemos esquecer o que escrevemos, tantas vezes o fiz. Mas não podemos evitar que um dia leiam o que não podemos apagar. 

Um pouco como a História. Há também coisas que não se podem apagar, personagens de que não nos será possível esquecer, acontecimentos como Auschwitz que, esta semana, celebrou os 70 anos da sua libertação. Uma loucura perceber que se passou tão pouco tempo, não chega aos anos que em média se demora uma vida a apagar. Por muito que se volte ao nazismo não o compreendemos no que trouxe de demencial loucura. Penso no Holocausto, nas experiências de purificação da raça, na célebre Joy Division, onde mulheres arianas se cruzavam com homens arianos para gerarem filhos bacteriologicamente puros. Pensá-los como monstros descansa-nos porque os isola e nos torna imunes ao Mal que é, apenas, coisa deles. Mas será apenas coisa deles? Serão os alemães carniceiros em potência? Ou os russos, sírios, chineses ou nigerianos? Ou seremos nós, humanos, se as condições estiverem reunidas, capazes de enlouquecer e sermos abismo? 

Um verdadeiro labirinto. Matéria para sábios e aprendizes. Os que pensaram, se debateram e tentaram ir mais longe, foram sempre os que mais mergulharam no labirinto. A sabedoria é pois a arte do mergulho em águas profundas, com ela devemos ambicionar a luz, procurá-la, sabendo contudo que serão mais as perguntas por responder no dia da morte do que as que tínhamos na idade das certezas. Cada grande pergunta a que se responde faz nascer mais dez que não existiam antes. A profissão dos sábios é escavar. Com fé de que exista um fundo onde não haja mais nada que precise de resposta. Uma espécie de inferno. 

E a profissão de 'escavador' não melhora se bebermos, mito poético de uma certa esquerda órfã de Kerouac, do ópio de Burroughs ou do absinto de Mário Henrique Leiria. Conheci muitas bebedeiras, as minhas próprias. Também as de amigos, gente que fui encontrando em lugares de destino, alguns poetas e artistas. Cresci com a ideia de a transgressão ser a condição para entrar num clube privado de homens e mulheres que descobrem palavras capazes de mudar o mundo. Como as poderiam descobrir se não ousassem desafiar o mundo conhecido, se não o agredissem sempre que pudessem? Vi poetas e artistas embriagados. E quando lá chegavam, quando alcançavam o fundo da garrafa eram iguais aos da mesa ao lado. Percebi-o numa noite de chuva. A poesia de um novo mundo, o encontro da diferença, não tinha de ser descoberta num lugar onde todos vomitavam da mesma maneira. 

No mesmo labirinto, aqui continuamos. E não há bebida ou droga que nos safe, pelo contrário. Nem constantes regressos à infância ou à memória. Um retorno fundamental para psicanalistas e inevitável para nós. Pela minha parte, da infância, lugar cada vez mais imaginado, tenho imagens difusas. O pavor que sentia quando a sopa tinha de ser engolida para evitar a velha bruxa do andar em frente. O conforto de adormecer com a ponta do cobertor entre o polegar o indicador. A ilusão de esperar que a cabeça do gigante da Feira Popular pudesse surgir na janela do primeiro andar onde nasci. Voltar à infância é um parque de diversões com baloiços, casas fantasmas, algodão doce e o poço da morte. Nem sempre encontramos a saída. Nem sempre a queremos encontrar. E nem sempre a ela desejamos voltar. 

O melhor é ficarmos pelas fotografias. E sem elas, pormenor curioso, podemos não dar pelo tempo. Acordamos, adormecemos, resolvemos problemas, desiludimo-nos e, às duas-por-três, sem nos darmos conta, passam meses e anos. Alguns entre nós cumprem objectivos, outros ficam pelo caminho em relação ao que ambicionaram, todos morremos. E sem os retratos passamos por tudo isto como se o tempo por nós não tivesse corrido. Uma ilusão. Porque o meu envelhecimento está ali. Numa caixa que guardo a um canto da sala. Uma caixa de fotografias que parece guardar todo o tempo que me passou sem que eu desse por isso.