Chico Buarque, que conheci em casa de Carlos do Carmo

Um dia falei longamente com Carlos do Carmo sobre a utopia. Já lá vão uns anos, mais de dez. Encontrámo-nos entre as nossas duas portas, perto da lisboeta Avenida Estados Unidos da América. O meu pai foi muitos anos seu amigo, estive algumas vezes em sua casa, onde a Judite, mulher de uma vida, me…

Não sei se isto é verdade ou se o é apenas na minha cabeça de tanto mo terem contado. Almoçámos (ou jantámos?) cozido à portuguesa e na travessa existia farinheira para todos. Quando o meu ídolo (que eu ainda não sabia que o seria) juntou as colheres e tirou para o prato couves, enchidos e carne açambarcou duas farinheiras e eu fiquei sem o que mais gostava do cozido… Foi com esforço que o ouvi cantar, mas o 'roubo' da farinheira não foi suficiente para evitar que depois me perdesse de amores pela sua música e pela sua escrita. Não o tornei a ver. Já ao Carlos vejo-o sem necessidade de ver, é talvez a pessoa que, após a morte de Amália, mais se aproxima, com António Lobo Antunes, do que defino como alma portuguesa.

Falámos de utopia entre uma porta e a outra. Engraçado, para mim a utopia define-se como uma cor que não existe. Um pensamento um pouco pueril, sei isso. Uma cor que não é o resultado de uma mistura improvável ou de uma imaginação fértil, nada disso. É uma cor que me surge em passo de corrida, apressada, com receio de ser vista. Uma cor branca sem branco, distante de tão próxima, silenciosa numa multidão feita de todas as cores. De todas, menos uma. A que um dia celebrarei com uma estátua feita de palavras nunca desenhadas. Esperarei por ela, pela cor que não via antes de ver. É esta a definição de utopia, a minha.

Não é palavra muito popular nos dias que correm. Apesar dos 'Syrizas' e dos 'Podemos' desta vida, a procura da utopia hoje faz-se de outras regras. Ou então, hipótese provável, vou envelhecendo e perdendo a pouca fé que tinha. Perguntam-me no que acredito, mantenho a crença nas mesmas coisas de sempre, na importância do nosso nome, por exemplo. As grandes empresas vêem a queda das suas cotações, as pessoas percebem o que é não ter dinheiro para sobreviver e até na doença sentimos na pele a decadência e queda dos órgãos. Mas de todas as falências, a maior é a que não é anunciada. Quando perdemos o nosso nome, a única coisa que realmente nos pertence, a perda dificilmente é reparável. Dizem-me que agora não é bem assim, que o nome é apenas um nome, como tudo o resto. Digo-lhes que não, repito-lhes várias vezes o nome pelo qual os conheço, repito-lhes até pensarem que sou um caso perdido. Ou acharem que talvez tenha razão.

Estas ideias nada podem quando comparadas com a velocidade dos dias. Tudo tem de ser rápido, tudo tem de se conseguir para ontem, o que é urgente passa sempre à frente do que é importante. A ideia de que não há tempo a perder é um exclusivo dos que vivem a acelerar, dos que desesperam na lentidão e são incapazes de compreender os que esperam. Reconheço-os pelo fogo que trazem. Pela sede que não se resolve com água fresca. Continuam a correr, a esventrar o tempo, a ser os que não têm tempo. Ultrapassam-me como flechas de peles vermelhas. Aceno-lhes quando calha e paro para mais um copo. Com todo o tempo do mundo.

Imagino esta gente com cauda. Evito olhá-los por detrás – em parte por recear que seja verdade, ou exactamente pela razão oposta, o certo é que deixo os suspeitos afastarem-se o suficiente. Acontece-me com os que carregam o luto mesmo quando vestem roupas claras, com os que se arrastam dormentes, maldizentes, negativos, fatalistas. Sentam-se e o peso que arrastam fica-lhes aos pés como uma cobra que precisa de agonia para continuar a crescer. Um dia terei a coragem de os olhar, quando se levantarem verei a cauda que hoje apenas imagino. Mas não hoje, hoje excepcionalmente não quero surpresas.

Hoje estou mais como a maioria. Importa-nos mais não sermos surpreendidos (não termos ilusões) do que arriscarmos caminhos novos. Não sei se o fazemos por medo ou por desejarmos evitar o incómodo da desilusão. É um padrão. Nas relações ou no trabalho o corpo habitua-se à ausência de surpresas e a cabeça acomoda-se à falta de exercício. Um perigo julgar o que construímos por adquirido, quando o fazemos deixamos andar ou abraçamos uma arrogância que um dia nos ficará cara. Talvez o mais difícil seja a construção de uma estabilidade desassossegada. Seja lá isso o que for.

Habituamo-nos ao que conhecemos. Já reparou que a maioria das pessoas almoça, janta, lancha e petisca sempre para o mesmo lado? Nas várias casas que conheci vi de tudo; os que mastigavam para o direito, os que o faziam para o esquerdo, os dedos de uma só mão sobram para me lembrar dos que comiam usando mais dentes. Nunca conheci quem os usasse todos. É isso. Falamos muito do cérebro e pouco da boca. O que aconteceria se a usássemos por inteiro e não apenas pela metade?

* Dedico este texto a Carlos do Carmo, um dia conto-lhe porquê.