Bem-vindos ao submundo da internet

Esta história podia ser de piratas fantasmagóricos, anarcas de bomba em riste e libertários radicais. Mas também de vilões que traficam seres humanos ou encomendam homicídios. Todas estas personagens podiam ser recicladas para nicknames de utilizadores da internet para caber num enredo de um romance ciberpunk, ao estilo de um William Gibson – cujas histórias,…

Esta história podia ser de piratas fantasmagóricos, anarcas de bomba em riste e libertários radicais. Mas também de vilões que traficam seres humanos ou encomendam homicídios. Todas estas personagens podiam ser recicladas para nicknames de utilizadores da internet para caber num enredo de um romance ciberpunk, ao estilo de um William Gibson – cujas histórias, nos anos 80, anteciparam a omnipresença da internet – ou de um Bruce Sterling.

Mas, apesar de se passar toda no mundo virtual, é bem real. Em Maio, a sentença de um dos mais mediáticos destes piratas fantasmagóricos vai ser proferida por um tribunal norte-americano. O nome real do suspeito é Ross Ulbricht, um empreendedor da net de 30 anos que será um dos fundadores do site Silk Road (em português, muito a propósito, 'rota da seda'), um dos maiores mercados de droga online de que há conhecimento: as transacções fazem-se com a segurança proporcionada pela chamada Deep Web, ou o 'lado oculto' (ultraprotegido por encriptação) da internet, com a moeda virtual 'oficial' que por lá circula, a famosa bitcoin, e rendem milhões de dólares.

À acusação de tráfico de droga, a Justiça americana somou a de tentativa de encomenda de seis homicídios da mesma forma, através de redes de chats protegidos geridas por Ulbricht. O jovem pode passar o resto da vida na prisão e é uma das poucas faces conhecidas destes domínios obscuros da net.

De acordo com a revista norte-americana Forbes, a acusação baseou-se na frequência com que o nickname (alcunha criada para a internet) Dread Pirate Roberts – personagem de The Princess Bride, um romance de William Goldman, de 1973, que seria adaptado ao cinema em 1987 – aparecia frequentemente em chats com a intenção macabra de se querer desembaraçar de seis utilizadores do site. Ora Dread Pirate Roberts seria Ulbricht no mundo real.

Os motivos, ainda contraditórios nas notícias que se podem ler sobre o caso, tinham que ver com conflitos na rede. Alguns clientes do Silk Road, aparentemente, ameaçavam revelar a identidade de outros utilizadores e denunciar o negócio na praça pública.

Um deles, conhecido pela alcunha FriendlyChemist, era um dos principais dealers do Silk Road e foi um dos que prometeu bradar aos céus esses dados confidenciais e ameaçou o próprio administrador da rede.

Ulbricht terá então contactado um certo Redandwhite, um internauta que se apresentava como membro dos Hell's Angels, a quem o tal FriendlyChemist devia dinheiro. E terá fechado com ele o negócio de eliminar o prevaricador contra uma soma equivalente a 132 mil euros em bitcoins. Seguir-se-iam outras cinco encomendas…

O caso ilustra o temor que as autoridades – e certos internautas desprevenidos que lá vão parar – têm à Deep Web e é uma espécie de dois-em-um do que se pode encontrar por lá: comércio de estupefacientes totalmente à margem da lei e assassínios por encomenda. Tudo é encriptado, dos nomes às conversações por chat e à moeda que sela os negócios. Só as entregas dos produtos transaccionados ou as mortes podem passar-se efectivamente no mundo real.

A net pode dividir-se entre o cândido e ultracomercial mundo do que se consegue procurar através do Google – a 'Surface Web', ou rede da superfície – e outra parte, 'subterrânea' e de acesso fortemente condicionado, a Deep Web. Alguns dizem que a parte escondida nas profundezas é muito superior ao que se vê na superfície. Outros dizem que é o contrário.

De qualquer modo, é uma espécie de universo paralelo onde impera, pura e dura, a lei de mercado. É aí, sem constrangimentos, que o mercado efectivamente funciona: “Como em todos os submundos, quer sejam virtuais ou reais, todo o tipo de actividade se lá pode encontrar”, diz um especialista em informática contactado pelo SOL e que preferiu o anonimato. Alguns referem-se-lhe como Dark Net, outros para a diferenciar como a parte criminosa da Deep Web. Este especialista prefere a destrinça de outro modo: “A Deep Web é uma parte da internet não acessível por meios clássicos, enquanto a Dark Net é um meio de troca de ficheiros ponto-a-ponto, utilizando protocolos atípicos”.

Além da porta de entrada, diz quem conhece o meio, é necessário saber como navegar para não ir parar a sítios muito pouco recomendáveis. E dizer 'pouco recomendável' é um eufemismo em muitos casos. É nestas profundidades que se podem encontrar redes pedófilas, tráfico de armas, sites especializados em clonar cartões de crédito e de débito e redes extremistas neonazis ou os mais recentes jihadistas. E muitas vezes imagens indescritíveis – e impublicáveis -, de extrema intensidade, que poderão ser montagens que servem de dissuasor para quem quer avançar mais nas pesquisas.

E como se consegue esconder este tipo de informação na era da abertura absoluta? Na verdade, a disponibilidade de tudo online é uma espécie de mito. Estes sites estão protegidos por softwares de encriptação e o mais famoso é o TOR (abreviatura de The Onion Router, ou 'router-cebola'), criado pela Marinha norte-americana para as comunicações secretas e que depois, um pouco à imagem da internet, saiu da esfera militar para a sociedade. A partir de 2006, o TOR passou a ONG, prosseguindo com o objectivo de tornar as comunicações mais privadas e seguras. Hoje chama-se TOR Project (https://www.torproject.org/index.html.en) e é uma rede de túneis escondidos na internet. Todos, praticamente, estão invisíveis nesta 'cebola' em que é preciso, de facto, passar por várias camadas para chegar à fonte.

Esta virtude para activistas em países totalitários, trabalhadores insatisfeitos com as suas condições laborais, vítimas que tentam denunciar quem as agride de forma protegida acabou, de certo modo, por gerar a outra face da moeda e criar monstros ao abrigo do direito à privacidade. No site especializado brasileiro Olhar Digital diz-se que o TOR Project chegou a ter o apoio de instituições como a Human Rights Watch e até do Governo dos EUA.

O funcionamento é relativamente fácil de explicar. Basta seguir o princípio da cebola – quando tentamos o acesso a um site, o nosso computador entra em contacto com um servidor que consegue identificar o IP (protocolo de internet). O TOR não permite que isto aconteça, pois antes dessa requisição chegar ao servidor, uma rede anónima de computadores cria pontes criptografadas até ao site desejado. Daí que, embora seja possível identificar esse IP que chegou ao destinatário, não é possível identificar toda a série de computadores que se meteu pelo caminho e muito menos o utilizador…

Por isso, é relativamente fácil albergar actividades nobres e protegê-las, por exemplo, de governos autoritários, mas também redes criminosas. O TOR inclui a protecção de posts, mensagens instantâneas e outras formas de comunicação.

Este mecanismo faz obviamente todo o sentido para a actividade criminosa que circula pela Deep Web, pois “quem aloja estes serviços quer limitá-los a determinados utilizadores em servidores de acesso restringido e difícil”, nota Gustavo Neves, da Linha Alerta, uma linha de denúncia que faz parte do projecto Internet Segura, co-financiado pela Comissão Europeia. Não sendo uma autoridade, a linha recebe denúncias, por exemplo, de pornografia infantil na net, faz uma triagem das queixas e envia-as para investigação, se houver matéria para tal. Ou seja, se esses conteúdos constituem uma ilicitude definida no Código Penal.

A pornografia infantil ou as redes pedófilas, sendo crimes públicos, “necessitam apenas de uma denúncia para chegarem ao Ministério Público”, completa Gustavo Neves. Quanto à Deep Web, observa, é uma tecnologia que pode ser usada num sentido positivo ou negativo. É neutra em si mesma, e faz sentido “precisamente para estar protegida dos meios de acesso ao utilizador”. A denúncia de uma vigilância à escala global a e-mails privados, promovida pela Agência Nacional de Segurança norte-americana a pretexto de controlar grupos terroristas, avivou mais o sentimento de falta de privacidade dos internautas.

Por outro lado, a investigação de situações criminosas nesta rede profunda é tão difícil quanto o acesso. Em alguns grupos só entra quem pode, não quem quer, através de um 'convite' a que se deverá seguir uma triagem para verificar quem é, realmente, o neófito. Por isso, continua Neves, “na Deep Web é também preciso fazer o papel de agente infiltrado” quando se quer investigar.

Terá sido, de resto, este método que acabou por trair Ross Ulbricht/Dread Pirate Roberts. Ao encomendar, presumivelmente, uma sexta execução, a de um dos administradores do Silk Road que tinha sido preso pelo FBI – para evitar que este denunciasse parte do esquema – Ulbricht terá recorrido aos serviços de um assassino a soldo que era, afinal, um agente federal infiltrado.

Este jogo ainda agora começou. No ano passado, a notícia de dezenas de detenções – entre as quais a de Ulbricht – associadas à droga e às armas vendidas nos subterrâneos da net precipitou vários desses sites a encontrarem administradores e domínios substitutos. Ao Silk Road sucedeu um Silk Road 2, entretanto também encerrado pelo Departamento de Justiça americano em Novembro do ano passado.

A Deep Web pode assim ser uma bola de neve. Para complicar ainda mais as coisas, a revista especializada Wired noticiava, esta semana, que afinal Dread Pirate Roberts pode não ser Ross Ulbricht, mas alguém ainda a monte que seria um “mentor” do inculpado.

Nos diários online entretanto revelados de Ulbricht, a Wired encontra diversas referências a esse guru pessoal, que o ajudou a alargar o domínio Silk Road a um estatuto de marca transnacional e a facturar em conformidade. “Tem sido incrível falar com um tipo que é tão inteligente e que está no mesmo barco, pelo menos até um certo nível”, terá escrito Ulbricht a dado passo.

Quanto ao misterioso mentor, o FBI suspeita que tenha o nome de guerra Variety Jones, e ainda não se percebe, a não ser por convicção libertária, por que decidiu ajudar Ulbricht a partir de certa altura. Chegou a prometer-lhe, num dos extractos dos chats que a Wired divulgou, aparecer de helicóptero para o tirar da prisão se fosse encarcerado um dia. Pois bem, Ulbricht ainda está à espera do salvador.

Enquanto não chega o helicóptero, a rede paralela vai-se desenvolvendo, e poucos podem afirmar com toda a certeza em que sentido. O jogo do gato e do rato está instalado em profundidades virtuais onde não há ainda submersíveis para chegar em segurança. Idealismo e libertação ou crime? “A clássica 'guerra' entre as autoridades e os utilizadores é o motivo para desenvolver novos meios de encriptação e de protecção da privacidade, principalmente desde que Snowden expôs ao mundo a massiva operação de vigilância a nível mundial”, diz o informático anónimo contactado pelo SOL.

ricardo.nabais@sol.pt