Meu caro irmão

Quem olhar para o verso em alemão “zwei apfelsinen im haar und an der hüfte bananen” terá dificuldade em perceber qual a relação que existe entre estas palavras imperceptíveis para a maioria e uma música que toda a gente conhece mesmo que não queira: ‘A Banda’, de Chico Buarque. Mas o verso faz parte da…

Com a adaptação da letra para outra língua, aquilo que Sergio Gunther terá ouvido nessa altura foi um poema sobre “duas laranjas nos cabelos e bananas nos quadris” – traduzindo o alemão do parágrafo anterior – em vez do original “estava à toa na vida, o meu amor me chamou”. Ainda assim, e apesar do claro desvirtuar do poema, não há sequer a certeza de isso ter acontecido. 

Na vida real, o irmão que Chico Buarque só descobriu tarde na vida e que tentou encontrar enquanto preparava o romance, morreu muito antes de ele poder cumprir o seu objectivo. Nunca se conheceram. O resto fica para a literatura e, ainda que as semelhanças com a realidade não sejam pura coincidência (no livro há um pai que se chama Sergio de Hollander enquanto Chico é filho de Sérgio Buarque de Holanda, só para dar um exemplo), trata-se de ficção.

“Sou um admirador de acasos e foi por um acaso que Chico descobriu que tinha este irmão, ouvindo a história da boca de Manuel Bandeira durante uma roda de samba”, explicou durante a apresentação do título Luiz Schwarcz, editor da Companhia das Letras, a maior editora brasileira que inaugura assim em Portugal as edições em nome próprio.

Editora arranjou investigadores 

Foi ao editor que um dia o cantor ligou para dizer que estava obcecado com a história do irmão desconhecido, resultado de uma relação do pai enquanto era correspondente na Alemanha, e a contar que tinha descoberto que o pai tinha tentado ajudar o filho mas a burocracia brasileira tinha dificultado a prova de quatro gerações arianas para garantir a adopção do menino. “Tenho medo que tenha morrido num campo de concentração”, disse. 

Queria escrever sobre isso, mas não podia continuar sem saber mais. E a editora tratou de arranjar os investigadores que acabaram por resolver o mistério. “Mais um acaso”, acrescentou Schwarcz, “é que Sergio Gunther também era mulherengo, cantor e teve importância na vida política alemã”. Mas o que não acontece por acaso é que, dentro de O Irmão Alemão, o quarto romance de Chico Buarque (e, sem dúvida, o mais pessoal), os livros assumam um papel fundamental. É dentro de um livro que o protagonista encontra a carta em alemão que o faz desvendar o segredo. É pelos livros, entidades sensuais espalhadas por todas as divisões da casa, que arranja uma ponte para dialogar com o distante progenitor. É também pelos livros que a mãe da história se torna indispensável, já que é a única que sabe onde se arruma cada autor. 

“Hoje tenho experiência para saber quantas vezes o meu pai leu um mesmo livro, posso quase medir quantos minutos ele se deteve em cada página”, lê-se. Sintomas de que, mais do que a busca de um irmão, a chave das demandas literárias de Chico Buarque pendem para a relação com o pai. “Fiz de tudo para o convencer a escrever. Até me ofereci para goleiro de um dos clubes de futebol dele. E ele dizia – parece que estou entregando para o meu pai e ele dizendo: literatura é coisa séria, Chico”, recorda Luiz Schwarcz. Uma coisa séria que, apesar de poder viver descansado só com o sucesso da sua música, Buarque já não consegue deixar de fazer.