Já fui daquele partido

Na sala de reuniões de um hotel em Lisboa, Ana Drago, então dirigente do BE, defendia com unhas e dentes uma aliança do BE com o Livre e com o 3D, de Carvalho da Silva, para as Europeias de 25 de Maio do ano passado. A Mesa Nacional estava dividida em véspera de eleições: metade…

Já fui daquele partido

Naquela tarde de domingo, Drago insistiu e afastou comparações: “Eu não sou a Joana Amaral Dias. Não vou cair no colo do PS”. O BE foi sozinho a eleições e saiu derrotado. Na ressaca da derrota, Ana Drago bateu com a porta. Hoje, é um dos rostos do Tempo de Avançar, uma plataforma eleitoral que junta Livre, Fórum Manifesto, Renovação Comunista e MIC- Porto para viabilizar um futuro governo do PS.

Nos últimos anos, a flutuação de militantes com maior ou menor peso institucional, com mais ou menos notoriedade, aumenta a olhos vistos. Alfredo Barroso, fundador do PS, é o mais recente e mediático caso. Aos 70 anos, entrega o cartão de militante socialista por se sentir envergonhado com o líder do seu partido. Não perdoa a “vassalagem” de Costa ao investimento chinês em Portugal nos últimos quatro anos. Afastou a adesão a outro partido mas garantiu que nas eleições de Outono próximo vai apoiar e votar BE para “[tentar] contrariar o oportunismo daqueles que se tornaram dissidentes do BE e se aproximaram do PS de António Costa à espera de um 'lugarzinho' na mesa do orçamento, ou seja, na distribuição de cargos num futuro governo”, escreveu no jornal i.

Barroso, que já foi deputado, secretário de Estado e chefe de gabinete de Mário Soares em Belém, dá por terminada a sua carreira política aos 70 anos. Rui Tavares e Ana Drago, a que se junta Daniel Oliveira, ex-PCP e também ex-bloquista, estão a meio de um percurso que um dia os poderá levar a funções num governo. Bateram com a porta no partido onde iniciaram a actividade política ou ganharam projecção e mudaram-se para outro lado da barricada com munições muitas vezes apontadas a ex-companheiros de luta. Louçã, fundador do BE, acusou recentemente o toque, ao afirmar que a Tempo de Avançar “não tem nenhum espaço político”. E lançou a farpa: “No dia em que se perguntar se se quer votar em Rui Tavares para ser secretário de Estado dos Assuntos Europeus, as pessoas votarão em António Costa para fazer esse governo”.

Com a consolidação da democracia, “é normal que haja um realinhamento político”, nota António Costa Pinto, e com isso “naturais flutuações políticas e ideológicas”, acrescenta o professor universitário. Joana Amaral Dias é outra das ex-dirigentes do BE que tenta o seu percurso fora do partido que lançou a psicóloga na política. Bateu com a porta no ano passado, no início de Maio, e deixou uma carta onde justificava a demissão com a liberdade para actuar e a discordância com a ausência de uma política de alianças no BE. Dois dias depois da demissão, apareceu ao lado de António José Seguro na Convenção Novo Rumo. A ligação ao PS já vinha de trás: em 2006 foi mandatária da candidatura de Mário Soares a Belém – Louçã era o candidato do BE – e em 2009 foi convidada pelo staff de Sócrates para integrar as listas do PS às Legislativas desse ano.

A aproximação ao PS, contudo, não viria a dar frutos. Amaral Dias, que perdia espaço na estrutura do BE, ainda ensaiou um apoio ao Livre. Até que, no final do ano passado, decide fundar a sua própria sigla inspirada no fenómeno espanhol Podemos. A passagem pelo Juntos Podemos foi curta. A ex-deputada ficou até o movimento que se queria transformar em partido sofrer “um assalto por dentro” pelo Movimento Alternativa Socialista (MAS) de Gil Garcia, outro dissidente do BE. Este mês, apresenta novo projecto com Nuno Ramos de Almeida. O 'Agir' (nome do movimento que quer ser partido) quer concorrer às eleições para dividir os votos à esquerda e, quem sabe, obrigar o BE a assumir nova derrota.

Sócrates, a criação da JSD

Alfredo Barroso, o eterno assessor de Soares, passa a constar na lista de fundadores do PS que cortaram relações com o Largo do Rato. Salgado Zenha deixou o partido em 1985 para apresentar uma candidatura própria a Belém, contra Soares. O avanço determinou o fim de uma relação entre os dois camaradas que se consideravam irmãos. Zenha perdeu. Antes,  Vasco da Gama Fernandes havia deixado o PS para integrar o Partido Renovador Democrático, em 1980. Antes ainda, Mário Mesquita deixa o PS cinco anos depois do partido ser fundado, em 1973. Mas do mesmo modo que o PS viu muitos dos seus quadros saírem, as portas do Rato também se abriram a novos socialistas.

Ferro Rodrigues e José Sócrates, dois ex-líderes do PS, viveram os primeiros tempos do pós-25 de Abril de 1974 a concentrar energias em outras forças políticas que não o partido que os levou a assumir mais tarde funções em governos. No caso do actual líder parlamentar do PS, os primeiros anos em democracia foram dedicados ao Movimento de Esquerda Socialista (MES), que se apresentou com uma declaração subscrita por Ferro e Jorge Sampaio. Já Sócrates – primeiro candidato do PS a conseguir uma maioria absoluta – passava o mesmo período empenhado na fundação da JSD, a estrutura jovem do PSD, onde estava Guilherme Oliveira Martins. Só em 1981 viria a mudar para o PS. A passagem pelo PSD será para sempre lembrada. Em 2004, Miguel Relvas elogiou a capacidade da JSD de ter gerado o então novo líder do PS.

Em 41 anos de democracia a direita também deu quadros ao PS. Diogo Freitas do Amaral e Basílio Horta, fundadores do CDS, deixaram o conservadorismo da direita e passaram para o centro-esquerda com o avançar da idade. Freitas do Amaral evocou o seu espírito livre para não militar no PS, mesmo quando assumiu como independente a pasta dos Negócios Estrangeiros no primeiro Governo de Sócrates, em 2005. A mão do centrista a Sócrates deu direito a censura no Largo do Caldas. Paulo Portas tirou a fotografia do ex-líder da galeria dos Presidentes do CDS. Basílio Horta, outro histórico do partido, também mantém uma ligação como independente com o PS desde 2009, ano em que se desvinculou do partido do qual foi vice-presidente.

Passado cravado na pele

A mudança de um partido para outro é um facto que pode servir de arma de arremesso na disputa política. Maria José Nogueira Pinto (1952-2011) foi duramente confrontada com o seu percurso. Depois de chamar “palhaço” a Ricardo Gonçalves no Parlamento, a deputada do PSD acabou por ouvir uma resposta desmedida do deputado do PS, num debate em que participava a então ministra da Saúde Ana Jorge. “A senhora não domina esta área [Saúde], veio de outra área, veio de outro partido, está sempre a mudar de partido, nunca está em lado nenhum, vende-se por qualquer preço para ser eleita por qualquer partido”. Nogueira Pinto chegou à política em 1992 pelas mãos de Cavaco Silva, mas adere ao CDS em 96, disputando a liderança com Portas, para o qual perde. Sai do partido em 2007 acusando Portas de assalto ao poder, quando o actual vice-primeiro-ministro se preparava para regressar. Em 2009 e 2011 volta a integrar as listas do PSD. É eleita.

A pergunta impõe-se: o eleitorado entende estas flutuações? As mudanças arrastam votos? António Costa Pinto não acredita que a mudança de um partido para outro possa ter impacto no resultado eleitoral. “Há sistemas partidários em que os nomes são mais fortes que os partidos. É o caso dos EUA. Não é o caso de Portugal em que, apesar da tendência para a pessoalização, os partidos ainda conseguem estruturar o voto”, analisa.

O caso de João Semedo, dissidente do PCP, bem pode ser visto como um exemplo de que o eleitorado de um partido não vota num recém-chegados de outra força política. Increve-se no BE em 2007, depois de integrar como independente as listas do partido de Louçã. No ano 2000, dizia dos comunistas cobras e lagartos. Acusava o PCP de falta de democracia. No entanto, acabaria por deixar o partido só em 2003 e ainda ensaiou uma Renovação Comunista, sem grande sucesso. Assume a liderança do BE em 2011, ao lado de Catarina Martins. Somou derrotas nas autárquicas e europeias, ao mesmo tempo em que o BE é acusado de sectarismo, de radicalismo e de ter um discurso semelhante ao do PCP. Vícios de outros tempos?

Quando é eleito líder do BE, Semedo junta o seu nome à curta lista de dissidentes que conseguiram liderar os partidos de acolhimento. Caso, além de Sócrates, de Durão Barroso, militante da FEM-L (Federação dos Estudantes Marxistas-Leninistas), a juventude do MRPP (Movimento Reorganizativo do Partido do Proletariado), antes da Revolução e de onde terá sido expulso em 77, depois de iniciativas censuradas pelo partido.

Barroso chega ao PSD em 1980, pelas mãos de Santana Lopes e de Marcelo Rebelo de Sousa e não consta que terá levado consigo revolucionários para o partido de Sá Carneiro, o mesmo onde conviveu com Zita Seabra, uma dissidente do PCP – ou expulsa, consoante as versões – que encontrou no PSD o palco para mostrar novas convicções. Na bancada 'laranja', Seabra foi contra a legalização do aborto, posição que chocou com o que defendeu enquanto militava no PCP. Abandonou a vida política activa em 2009 e não prometeu regressar ao partido, contrariamente a Helena Roseta, outra histórica dissidente do PSD e do PS. “Sempre fui independente. Já estive em dois partidos”, disse, em 2007, ano em que se candidata a Lisboa com o Movimento Cidadãos por Lisboa. “Saí do PS apenas porque queria candidatar-me à Câmara de Lisboa. Não deixei de pensar o que pensava, nem deixei de ser socialista. Só não quis que se colocasse a situação de um processo disciplinar”. Em 83, ano em que deu a cara pelo PSD a Cascais, e venceu, a música era outra. 

ricardo.rego@sol.pt