Ninguém é perfeito…

No final de Quanto Mais Quente, Melhor, de Billy Wilder, um milionário excêntrico descobre que a mulher por quem se apaixonou é, afinal, um homem. Um obstáculo trágico? Nada disso. «Ninguém é perfeito…» – e o filme acaba com esta sentença sábia.  

Passos Coelho preferiu adoptar um outro tom, solene e sonso, típico do aluno exemplar apanhado em falta, para justificar os seus problemas com o fisco e a Segurança Social: «Quero dizer que não sou um cidadão perfeito, tenho as minhas imperfeições. Em consciência, cumpri sempre aquelas que achei que eram as minhas obrigações. Mas se algum dia me chamaram a atenção para elas corrigi imediatamente».

Claro, ninguém é perfeito, mas Passos Coelho abusou da insustentável ligeireza com que, repetidamente, se esqueceu de cumprir aquelas minudências agora impostas com implacável rigor pelo seu Governo aos contribuintes portugueses.

Passos Coelho não só se esqueceu como dissimulou, inventando uma cabala política – imputável aos seus adversários, por interposta imprensa – para colocar-se no papel de donzela ofendida, vítima de odiosas perseguições. Afinal, já depois das revelações sobre a sua dívida à Segurança Social – entre 1999 e 2004, prescrita em 2009 – ficou a saber-se pelo Público que, entre 2002 e 2007, Passos Coelho terá sido «alvo de pelo menos cinco processos de contra-ordenação e de execução fiscal motivados pelo incumprimento das suas obrigações fiscais». 

Entretanto, já quase ninguém se lembrará de que há apenas seis meses fora divulgado outro episódio edificante, envolvendo rendimentos extraparlamentares – e não declarados para efeitos fiscais – que o actual primeiro-ministro teria auferido entre 1997 e 1999. Perante a sua assumida falta de memória, Passos chegou a pedir à PGR que averiguasse o assunto. Pedido sem consequência: o caso estava prescrito.

Convenhamos: são casos a mais e datas a mais, que revelam um padrão de comportamento pouco compatível com a personalidade de quem exerce hoje o cargo de primeiro-ministro. E que, nessas funções, tem desempenhado o papel que se sabe no agravamento da carga fiscal, no corte drástico das pensões ou salários e no processo de empobrecimento e desemprego que afecta grande parte da população portuguesa.

Em qualquer país democrático normal, é escrutinada publicamente a coerência de comportamento dos que exercem responsabilidades governativas – e, neste caso, ao mais alto nível. Mas Passos Coelho e o seu partido recusam obstinadamente assumir esta realidade, atirando poeira para os olhos dos que ainda serão sensíveis às teorias da conspiração. Falam de «chicana política» que ameaça envenenar o ambiente da campanha eleitoral, quando são eles próprios a promover essa chicana. 

De facto, o fervor apatetado com que as direcções do PSD e do CDS se têm entretido a apoiar as declarações de António Costa num encontro com empresários chineses é revelador da degradação do debate político em Portugal, favorecendo o clima de desencanto entre o eleitorado. 

As declarações de Costa são ostensivamente contraditórias com o diagnóstico que tem feito sobre a situação do país.

Mas convertê-las numa brincadeira de crianças só acentua o ambiente de irresponsabilidade e infantilismo hoje dominante na nossa vida pública. Além disso, rebaixar Costa ao nível da anedota não promove Passos e Portas. O mais provável é que os eleitores os vejam reflectidos todos, indistintamente, no mesmo espelho.

Dito isto, é natural – e até óbvio – que se fale para uma audiência de empresários chineses de forma diferente da que se utiliza perante uma audiência de eleitores portugueses. Simplesmente, Costa não resistiu à velha tentação florentina de jogar com gregos e troianos sem cuidar da coerência essencial da sua mensagem política.

Ou era possível manter essa coerência ou, então, teria sido preferível evitar o exercício, aliás de uma duvidosa eficácia, de sedução dos investidores chineses, armados com a sua proverbial desconfiança oriental. A ambiguidade paga-se caro e, para já, comprometeu a confiança dos eleitores na clareza de uma alternativa protagonizada por Costa. Não há boas tácticas sem convicções firmes.

Nem as últimas sondagens, nem o nada edificante episódio das facilidades da Câmara de Lisboa ao Benfica, nem, sobretudo, as hesitações em passar do diagnóstico às medidas de governação – ultrapassando as generalidades bem intencionadas – têm ajudado António Costa a afirmar-se no terreno.

Mas  talvez  o  seu  maior  adversário seja ele próprio, o excessivo calculismo   que   acaba   por   manietá-lo na busca de uma solução perfeita perante as 'variáveis' em jogo.   Costa   está,   como   Passos,  refém  de  si  mesmo.  Mas  se  ninguém é perfeito, é possível fazer melhor…